domingo, 9 de novembro de 2014

Umidade

Em 2013, vários escritores passaram a noite na Biblioteca Pública do Estado, com o intuito de criar contos de terror, dentro de um evento chamado "Tu, Frankenstein - II". Eu produzi dois contos. "O Pianista", publicado na coletânea "Tu, Frankenstein - II", editado pela BesouroBox e lançando no dia 08 de novembro de 2014, no CEEE Érico Veríssimo, dentro da programação da 60ª Feira do Livro de de Porto Alegre, noite em que outro grupo de escritores foi convidado para virar a noite escrevendo, no mesmo local. O outro conto que produzi, então, ofereço aqui aos leitores do Porteira da Fantasia - Contos.


Ninguém sabia ao certo quando começou. A princípio era só uma sombra em uma das esquinas da parede, uma coisa leve e amorfa, diáfana, mesmo. Passou desapercebida. Parecia que bastava com abrir alguma das janelas, ou passar um pano e se desfaria. Deixar passar o ar.

O caso é que ali, abrissem as janelas que fossem, jamais havia sol e jamais a brisa soprava diretamente. Não naquele canto. Nunca.

Depois de algum tempo, a sombra leve escureceu. E às suas bordas desenhou-se como que um halo cinzento que ia, pouco a pouco, engolindo a tintura da parede, a demã mais superficial, um cinza claro, um pouco azulado, triste e quedo como um suspiro. O miolo da mancha, tornou-se cada vez mais escuro, aumentou, ganhou volume. Em breve, era tão escuro que o cinza azulado se dissolveu em seu interior.

Veio o inverno.

A biblioteca, com seu acervo delicado de polpa antiga e volumes raros, tremia diante da umidade que ganhava a cidade, vinda do Guaíba, soprada pelo vento da estação. Às vezes intercalavam-se largos dias de mormaço insuportável, um cobertor que antecedia as frentes frias vindas do sul e que traziam em si mesmas, dias e dias de chuva fina e constante, constante, fina, e de novo constante. Semanas inteiras de chuva sem trégua, como se fosse o sítio de alguma guerra invisível e interminável.

O salão ficou fechado por quase um mês inteiro.

Quando por fim abriu o sol, e a calçada secou sob o sopro inclemente do Minuano, e a mui valerosa cidade de Porto Alegre respirou cinco graus centígrados, saudando o frio como se não conhecesse a miséria, a bibliotecária decidiu fazer uma espécie de ronda pelas salas, abrindo as janelas, ordenando faxinas aqui e ali, revisando os parquês antigos, os móveis históricos, os armários de portas de vidro e cristal. Não esqueceu o salão vazio ao lado do acervo. Abriu as janelas com alegria, até. Respirou a brisa fria repleta do rugido ensurdecedor da Riachuelo com prazer. E quase não percebeu a mancha no canto da parede.

Era uma coisa enorme e achatada. Cobria dois, talvez três, dos seis metros de altura do salão, começando no centro da esquina e espalhando-se de forma abjeta pelas paredes e na direção do teto. Um cheiro desagradável preenchia aquele recanto, algo entre o reboco apodrecido e gesso ainda molhado. O rosto da bibliotecária se contraiu, encarando o mofo como se fosse uma barata em sua cozinha – e ela, particularmente, não tinha medo de baratas. Um chinelo era tudo o que necessitava para livrara-se da peste, e não tinha pudor algum em brandi-lo em chão, paredes, pias, portas, armários, o que fosse.

Chamou o zelador do prédio. Que naquele dia, informaram-lhe, estava de folga, porque tinha ido ao dentista. Mas, no dia seguinte, ele acudiu prestativo ao chamado, assim que chegou.

– Isso vai dar trabalho – ele comentou com um suspiro, enquanto coçava a cabeça meio careca. Espiou o olhar severo da mulher e suspirou de novo, resignado. – Vou fazer uma lista do que vamos precisar.

A lista era longa. Alguns dos materiais pedido, não constavam no almoxarifado e precisavam ser comprados fora. Foi preciso fazer um documento especial, que levou seu tempo costumeiro para tramitar pelos meios legais.

Outras frentes frias fizeram sua entrada triunfal no estado, antecedidas de mais mormaço e seguidas de períodos longos de chuva.

Fina e constante.

O salão teve de permanecer fechado por longos períodos, a fim de preservar o chão antigo. Nos poucos dias de sol e frio, a bibliotecária abria a sala, na tentativa de refrear a mancha. Cada vez mais agourenta, ela agora tomava quase todo canto da parede, inclusive o canto superior, onde parecia ter se acumulado e adquirido uma textura diferente, aveludada, negra.

O pedido foi finalmente aprovado. A primavera deu os ares da graça. A praça da Alfândega se encheu de jacarandás floridos e livros. Cheiro de pipoca e som de orquestras e risos de crianças.

Mas ali, no salão cinzento, o vento que entrava com o cheiro e o som distante da mais tradicional feira da cidade, era imediatamente corrompido pelo odor cada vez mais acre do mofo. O material de limpeza chegou. O zelador, a bibliotecária e toda a equipe resolveu usar o final de semana de folga e limpar o salão. O que era um trabalho, virou quase um piquenique. Muito riso. Alguém trouxe um rádio. Teve dança do pezinho no salão nobre. Houve um momento de tensão e depois de gargalhadas, quando a bibliotecária se desequilibrou, no alto da escada e teve de se equilibrar com mãos, rosto e peito contra a mancha corrupta. Ela ficou com a metade da face limpa e a outra metade totalmente escura, onde só se viam os olhos e, na foto que alguém tirou com o celular, o sorriso meio contrariado. Foi parar na internet. Duzentas e quarenta e três pessoas curtiram, entre eles seu ex-marido (que aproveitou para divertir-se às suas custas), seus dois filhos e sua mãe, que tinha feito um curso de informática e agora tinha Facebook.

Depois de tudo pronto e o canto limpo, fora todos comer uma pizza. Duas das moças da equipe se desculparam alegando que estavam com dor de cabeça. Tinham renite.

Na segunda-feira, o salão estava limpo novamente e a bibliotecária sorriu com superioridade para o canto até então encardido, quando abriu as janelas pelo breve espaço de uma hora, antes que começasse a chover novamente. Como de hábito, o restante da feira de livros foi composta de dias chuvosos, cinzentos e quentes. A bibliotecária fez um levantamento fotográfico acurado do canto até então engolido pelo mofo. A mancha, totalmente removida, deixara para trás uma marca clara onde devorara a tinta cinzenta. Onde houvera o halo, a tinta superior estava levemente corroída, mas a medida em que o olho se deslocava para o centro da mancha clara, era possível perceber que a tinta estava rachada e esmaecida. Curiosa e intrigada, a bibliotecária chamou o zelador e pediu que trouxesse a escada. Subiu nela e observou a superfície de perto: o cinza azulado estava solto e esfarelado. Ao tocar a parede delicadamente com a ponta dos dedos, uma placa se soltou, revelando a pintura original do salão, uma espiral amarelada, que separava temas de folhas roxas e vermelhas. A mulher estremeceu.

– Tá tudo bem, chefa? Se ficar tonta, eu posso subir – ofereceu-se o zelador que até aquele momento se limitara a segurar a escada com uma expressão completamente absorta no nada.

– Pode deixar – ela murmurou, subindo mais dois degraus, até no topo do salão. Inspirou fundo antes de tocar a superfície, agora frágil.

Uma parte do reboco soltou-se imediatamente, revelando os tijolos. No interior do cimento que unia os tijolos, pequenos e macabros veios negros se afundavam como raízes. A bibliotecária rosnou um palavrão e o zelador, lá embaixo, levantou os olhos, surpreso com o vocabulário.

Prática, a bibliotecária voltou para o escritório que ocupava no subsolo, cuja principal fonte de luz era a porta de vidro que dava para o velho jardim de inverno da biblioteca, um retângulo tímido no fundo dos três andares do corpo principal da construção. Um dia abrigara bancos, plantas e estruturas de metal para que gavinhas formassem um caramanchão, mas eis aí uma coisa que jamais vingou. Talvez fosse que batesse pouca luz, ou talvez, que pouco ou nenhum ar de fato circulava lá por baixo, ou que fizesse muito frio no inverno, ou que a fonte no centro do retângulo, uma fonte que tornava o espaço ainda menor e mais apertado, dominado por uma estátua de bronze agora azinhavrada e escura, tornava o espaço úmido e sombrio e tão desagradável que a bibliotecária se recusava a abrir a janela, a menos que fosse insuportavelmente quente.

O que, no momento, não era o caso.

Enfim, ela foi ao seu escritório e redigiu uma carta, acrescentou fotografias, preparou um relatório e ao cabo de alguns dias, enviou tudo em três cópias, solicitando urgentemente a presença de um restaurador a fim de fazer um laudo técnico, para que pudessem dar início a um processo que, esperava, terminaria por reverter o estrago.

Um dia no futuro.

O zelador entrou de férias.

Houve sol e calor, o sol e o calor que antecedem os temporais. Choveu forte. Algumas velhas goteiras deram o ar da graça. Apareceram algumas goteiras novas, que ninguém imaginava de onde estavam vindo.

Uma infiltração surgiu no salão cinza. Todo o canto que fora atingido pelo mofo, molhou-se como tinta nova escorrendo pela parede. As raízes negras do mofo atingiram as rachaduras do reboco.

Uma mancha cinzenta apareceu no arquivo do acervo. Foi atrás de uma estante, na parede que o separava do salão cinzento e logo não foi detectada. Em todo o caso, a diferença, agora, não era a sua presença. Era o tempo. Em questão de minutos, surgiu. Em duas horas, estava constituída. No final da tarde, ocupava uma área considerável.

No dia seguinte, estava na parede interna da estante.

Outra mancha surgiu, no salão do piano. Mas como a parede era particularmente adornada com motivos mouriscos, só foi detectada quando devorou o dourado velho.

Uma das moças que sofria de renite, pediu dispensa. A outra não veio mais trabalhar.

A bibliotecária dobrou o turno. Com o horário de verão, comentava, dava até prazer sair um pouco mais tarde. Ainda era claro, em torno das sete meia e às oito horas ainda era possível passear com relativa tranquilidade perto de casa. Quando o outro rapaz da equipe avisou que precisava viajar para o enterro de um parente, em Uruguaiana, ela simplesmente deu de ombros e assinou a dispensa. Dava igual. Mais ninguém da equipe ousava subir ao segundo andar da biblioteca. Quando muito, iam até o acervo. A estante, comprometida pelo mofo, era como um animal imóvel e raro no fundo de um corredor, à espreita. Tinham conseguido salvar parte do material depois de uma tarde inteira de muita lamentação, mas agora, todas as estantes apresentavam manchas escuras de bolor e não havia mais para onde levar os velhos livros. O salão cinzento permanecera fechado na última semana e ela tinha medo de entrar lá. Da última vez, as paredes apresentavam veios negros por onde o mofo se espalhava e ela não comentara com ninguém mas tinha a impressão de que os veios pulsavam.

Naquele final de tarde, demorou-se mais do que o costumeiro. Fechou todas as janelas da fachada, como num ritual. Parou junto da porta do salão cinzento ouvindo, como se pudesse ouvir o reboco estalar, partindo-se e se esfarelando sob a ação da criatura que agora habitava a biblioteca. Tocou a maçaneta de bronze. Pareceu-lhe estranhamente cálida e extremamente seca. Baixou-a e empurrou. A porta não cedeu passagem. Empurrou com mais força, e mais e mais, até que ouviu um estalo alto e a estrutura de madeira ruim com um estrondo, ruindo para o interior do salão, de onde emergiu uma nuvem cinzenta que flutuou diante dela, e depois avançou com a brisa que o movimento das folhas carcomidas tinham feito ao tombar, abraçando-a, pousando em sua pele como uma carícia asquerosa, mesclando-se ao seu suor, penetrando suas narinas, sua boca, seus olhos e ouvidos.

A bibliotecária recuou com um grito surdo, a boca áspera, um sabor grotesco de pó, madeira barro, areia, decomposição, corrupção. No fundo, como o retrogosto de um prato exótico, um sabor metálico que a fez pensar na estátua de bronze da fonte do jardim de inverno.

Ela virou-se, os olhos lacrimejando, os cantos das pálpebras colando. Esfregou os olhos em agonia. Gemeu de dor e cambaleou pelo salão mourisco, percebendo o quanto ele estava escuro, enxergando por fim as pernas do piano negro cobertas pelo mofo aveludado. Apoiou-se em uma das pesadas colunas de mármore e ela inclinou-se, ruindo um canto do pé de pedra, também coberto pelo mofo, oculto pela sombra de um armário. E depois foi ganhando a entrada do acervo, sem olhar, sem olhar para o interior, as lágrimas agora escorriam pelas suas faces, os olhos coçavam, mas ao fechá-los com os dedos demorava para conseguir abri-los. No alto da escada hesitou, oscilando. Desceu degrau por degrau, as mãos agarrando o corrimão de bronze, deixando sobre ele um rastro de pó cinza escuro, pele, sangue e carne em decomposição.

Achou que ia conseguir chegar à porta.

Seus pés se desfizeram entre um passo e outro, a carne devorada de dentro para fora desde aquela tarde no alto da escada, os ossos esfarelados e amarelos como os de um cadáver. E antes de ela arrebentar o crânio no chão de velhos ladrilhos verdes e amarelos, ainda conseguiu ver os cotos dos braços cobertos do mofo aveludado que se espalhava pelo teto, pelas paredes, pela sua morte e pelo silêncio cravejado de buzinas e rugidos e motores e gritos de passantes anônimos que ecoavam para além da porta fechada.



Um comentário:

Ana disse...

Perfeito, Simone! O pior é que esse conto tem um pouco a ver com a minha realidade. :/ Espero que não termine assim para mim.