domingo, 25 de maio de 2014

Capítulo: O primeiro dia no Tabuleiro a gente não esquece

Nos últimos tempos, muita gente tem se mostrado surpresa quando eu comento que tenho livros infanto-juvenis e juvenis, como se o fato de ter editado, principalmente, textos infantis, no início da minha carreira fosse um fator determinante e vitalício. Pois bem, não é.
Também existe a discussão Fantasia Europeia X Fantasia de fundo cultural brasileiro, como se uma excluísse a outra. Coisa com a qual não concordo. Acho que se pode perfeitamente ler, escrever e se divertir muito com ambas. Apenas acredito que fazemos escolhas para cada história.
Há anos que tenho material infanto-juvenil e juvenil. A questão é que, por razões que eu não entendo muito bem, as pessoas não parecem conhecer esse material apesar dele já ter estado completo, na rede, de graça.
Por isso, resolvi disponibilizar um dos capítulos da primeira parte de "O Jogo no Tabuleiro".
Se você se interessar em ler o livro todo, há duas opções. Uma delas é adquirir o volume em papel, através do Clube de Autores, clicando AQUI. A outra, é adquirir o  e-book, através do Amazon, clicando AQUI.
Agora, se você já leu, pode passar pelo Skoob e deixar sua avaliação por lá (veja AQUI). Eu vou ficar muito feliz.
A todos, boa leitura.


"6.

            Despertamos bem cedo. Bulbo providenciou para que acordássemos com o cheiro de leite quente penetrando as narinas e o aroma de pães dourados. Cíntia sentou-se, espreguiçou-se com uma cara alegre, olhando ao redor. O sorriso desapareceu. Pensei que ia chorar mas controlou-se. Em cima de uma pedra no meio da caverna secundária que nos servira de quarto, havia uma bandeja com quatro copos de barro e um bule fumegante.

            – Hum, que fome – disse Edula despertando ao meu lado. Sorri-lhe e tratei de me sentar, desejando um banho e um pente.

            – Bom dia, meninas! – gritou Cezna alegremente, voando pela porta, enrolado em um lenço. Cíntia encolheu-se e desviou o olhar dele com um gemido.

            – Puxa, vocês acordam com um humor do cão, né?

            – Não fale comigo antes da primeira xícara de leite – murmurei engatinhando para a bandeja. Dormíramos no chão, sobre pelegos quentes, peludos e duros, apesar do "colchão" de musgo por baixo deles. Minhas costas estavam me matando.

            – Vou avisar Faiald que estão todas acordadas. Bulbo fez umas broas de polvilho como nunca provei igual!

            – Gostaria de saber onde é que ele consegue farinha e açúcar para as tais das broas – murmurou Márcia sentando-se.

            – Disse que vai à Arrelipe uma vez a cada três meses. É uma espécie de cidade – explicou nosso amigo voador, pousando junto a mim. Enchi um dos copos de leite e sorvi-o com cuidado. Era delicioso. Era como o Natal entrando pela garganta.

            – Estamos quase prontos com as mochilas – reclamou Cezna. – Vocês dormiram demais!

            – Por que não nos chamaram? – redargui, dando de ombros.

            – Com quem você está falando?

            Olhei para Edula e depois para Cezna, que me encarava com um sorriso mandrião no rosto. Aquilo devia querer dizer algo, eu tinha certeza, mas não sabia o quê era.

            – Com Cezna, claro.

            – Ele não disse nada – murmurou a guerreira.

            – Não temos culpa se Edula está surda como uma velha caduca, temos Cida? – perguntou o alado erguendo voo. Esperei que ela reagisse ao comentário, mas tudo o que fez foi bocejar de novo e esticar-se toda.

            Partimos por volta de dez da manhã, sob uma saraiva de reclamações por parte do gnomo, por causa do horário adiantado, mas, também, muitas tarefas foram deixadas para a última hora. Por exemplo, a vaca que Bulbo ordenhara para nos suprir de leite, teve de ser posta para fora do curral e a portinhola foi deixada aberta, para que o animal encontrasse um abrigo na ausência do gnomo, que deixou o cocho forrado de ração para ela.

            – Ai, ai, pobre da minha Margarida – lamentou ele acariciando o focinho que havia baixado até a altura dele. O gnomo ficou um instante em silêncio, depois a vaca soltou um longo e triste mugido e se afastou na direção da clareira onde tínhamos encontrado Faiald no dia anterior.

            – Eu disse à ela que terá de se virar sem mim daqui por diante. A comida que deixei não vai durar dois dias, eu sei, porque ela é muito gulosa, e vacas tendem a esquecer coisas importantes como o fato de que eu não voltarei para cuidar dela. Mas, se tiver sorte, até o final da semana irá procurar o palácio do Olmo Azul, onde nasceu. Lá eles cuidarão dela.

            – Quem sabe se você não voltará? – indagou Edula ajeitando a bagagem que ia levar nas costas. – Faiald não voltou?

            – Voltar significa derrota – disse o ruivo passando por ela. – Vamos ser otimistas e pensar que Margarida terá de encontrar o palácio dos gnomos.

Cada um levava uma mochila feita do próprio cobertor, alguns nacos de carne salgada, trufas, biscoitos secos, uns poucos pães, sobreviventes do café da manhã, e frutas cristalizadas. Faiald contava em encontrar caça e frutas frescas pelo caminho, além de peixes e ovos, que o gnomo e Cezna se encarregariam de recolher dos ninhos. Levávamos ainda, seis capotes de lona, para quando chovesse, e nossas armas: uma espingarda de cano duplo, uma espada e um punhal. E como se não bastasse, cada mochila levava de acréscimo arreios de couro bastante pesados que seriam muito úteis mais adiante, segundo  Bulbo.

            Ao sairmos da caverna, o gnomo trancafiou a pesada porta com uma chave esverdeada de azinavre e a engrenagem guinchou de preguiça e desuso. Ele a depositou em um buraco da parede e tapou-o com uma pedra. Saímos para a manhã luminosa da Floresta Ujier, emergindo dentre as raízes com uma sensação agradável de leveza. Bulbo foi o único a olhar para trás e comentar:

            – Que pena! De certo, aparecerá uma família de lobos ou um urso que terminarão morando no meu canto.

            – Existem lobos, aqui? – perguntou Márcia, espantada.

            – E morcegos, unicórnios e mais uma porção de criaturas que tem o hábito de surgir detrás das moitas quando menos se espera – confirmou Faiald. Parecia orgulhoso ao olhar ao redor com um longo suspiro. Perguntei-me se eu seria capaz de abandonar tal lugar, assegurado contra o ruído de automóveis e o cheiro do asfalto quente, o calor infernal e a descoloração das cidades. Ali o ar era leve e claro, o chão tão macio quanto um tapete, composto de folhas secas, musgo e terra negra. Em vez do burburinho incompreensível, corria a brisa e o silêncio pairava suave em meio a sombra, um silêncio que de vez em quando se despertava num bocejo que era o murmurar de um riacho.

            Na região onde estávamos, a mata recebia a alcunha de Floresta dos Espinheiros. Não foi difícil adivinhar a razão para o nome. Havia espinheiros espalhados por todos os lados, e roseiras enormes com flores perfumadas pendendo dos galhos.

            Caminhamos por bastante tempo em silêncio. Faiald resolvera atalhar através da mata, entrando na estrada uns dois ou três quilômetros adiante, fugindo de uma grande curva, e saindo muito além da clareira onde o tínhamos encontrado. A medida em que andávamos, a floresta tornava-se mais sombreada e o musgo mais áspero, desprendendo um cheiro agreste que confundia-se com o das roseiras. Os troncos das árvores eram grossos e nodosos, e às vezes parecia haver caras desenhadas neles, caras sonolentas, engraçadas, bonachonas. Embora não fizesse ainda uma hora que andávamos, já estávamos suando pelo esforço. De vez em quando vislumbrávamos entre os arbustos mais nus ou nos galhos velhos e nos troncos podres, serpentes cujas cabeças assemelhavam-se às dos dragões dos livros de crianças, raposas de caudas grossas e peludas que nos espreitavam com os olhos negros muito brilhantes e assustados, mãos-peladas e suas carinhas de saltimbancos, e esquilos espantados e curiosos que corriam nos galhos, saltando de uma árvore para outra com incrível agilidade. Cedo compreendi que a paz beatífica que eu pensara haver no começo da caminhada, era ilusória. Também ali havia regras de trânsito e era preciso aprender a ver os sinais de tráfego da floresta. Mas era divertido e eu parava com frequência para admirar as criaturas da floresta e todo mundo reclamava por causa dos atrasos que eu terminava provocando.

            Aos poucos, a sombra da mata foi substituída por uma claridade anormal, branca e fria. Um odor acre e desagradável sobrepôs-se ao perfume das roseiras, mas eu me senti mais à vontade e pareceu-me, afinal, que aquela conversa sobre feras, ursos e lobos fora só para assustar-nos. O Jogo ia ser como um piquenique de verão! Os animais fugiam ao ouvir nossos passos e as aves cantavam sobre nossa trilha como se fossem anjos da guarda. E ao pensar nisso, dei-me conta de que não ouvíamos mais pássaro algum desde que penetráramos naquela parte clara da floresta.

            Faiald caminhava é frente, absorto, não prestando muita atenção na direção em que nos guiava. Por que o faria? Conhecia bem o lugar e tinha coisas mais importantes para se preocupar do que as belezas ou esquisitices de seu lar. Mas nós não éramos imunes a nenhuma dessas impressões. E Bulbo, que caminhava à retaguarda, estava muito mais atento do que ele. Foi o gnomo que, de súbito, parou e disse com a voz tensa e desafinada como um agudo de violino mal feito:

            – Faiald! Acho melhor voltarmos!

            Voltei-me, encarando-o surpresa, descobrindo que seu nariz vermelho ficara cinza, de tão pálido.

            – O quê ? – murmurou o ruivo voltando-se para ele. O pequenino apontou com o polegar para cima, os olhos faiscando de medo. Eu ia erguer o rosto para ver o que estava se passando sobre nossas cabeças quando ouvi o grito de Cezna. Era um grito pavoroso que brotava da alma e me fez gelar dos pés à cabeça, imobilizada de pavor enquanto meus pensamentos disparavam em imagens borradas.

            – Socorro! Meu Deus, me ajudem! Socorro!

            – Essa não ! – sussurrou Faiald saltando para o lado e puxando a adaga de sua cintura com violência. – Onde está ele? – perguntou voltando-se. Levei alguns segundos para compreender que se dirigia é mim.

            – Como é que eu vou saber? – repliquei assustada.

            – O que está acontecendo? – perguntou César ao lado de Márcia.

            – Ajudem-me! – berrou a voz de Cezna em algum lugar acima de nós, horrorizado. Parecia algo fora de hora e de lugar. O que podia haver para temer ali? – Pelo amor de Deus, ajudem-me!

            – Onde está você ? – perguntei e foi como se tivesse aberto uma comporta por onde o medo dele entrou e me inundou. Oh, meu Deus, e que medo era aquele! Me contraí com violência quando imagens começaram a tornar-se nítidas em minha mente. – Onde? – consegui balbuciar.

            – Não ! Afaste-se de mim! Afaste-se de mim! – gritou ele, oculto pelas ramagens.

            As imagens focalizaram-se. Já não eram borrões sem sentido. Tinham forma e movimento.

            Tinham olhos.

            E minhas pernas pareciam ter se fincado no solo, endurecido feito raízes de carne.

            – Ah, não ! – gemi quando consegui reconhecer o que via. Preferia que aquilo tivesse continuado indefinível. Se continuasse olhando aqueles olhos, para aqueles corpos imensos que avançavam para devorar-me o cérebro, teria um infarte e morreria antes mesmo que seus bafos almiscarados, seus palpos viscosos chegassem perto de mim.  

            Agachei-me e olhei para cima.

            A visão sumiu. Não via mais a criatura e, Deus, eu não queria dizer-lhe o nome, como se o simples ato de pronunciá-lo fosse em palavras ou pensamentos, a tornasse real. Fora só uma ilusão! Aquela coisa não podia ter qualquer vínculo com a realidade!

            Acima de nós, entre os galhos cerrados, uma capa branca e fosforescente se espalhava pelas folhas e árvores, criando um teto que nos ocultava o sol e as altas ramagens.

            – Temos que fazer alguma coisa! – gritei.

            – Do que é que você está falando? – berrou Edula ao meu lado com a espada em punho. – Onde está ele?

            – Eu não sei! – solucei. Não queria acreditar no que vira e no entanto era preciso agir o mais rapidamente possível, antes que Cezna tivesse a pior das mortes.

            Antes que os olhos, os quatro pares de olhos se detivessem em nós com seus reflexos famintos nas órbitas globulares.

            – Ah, meu Deus, é uma aranha! Enorme! Muito grande mesmo!

            – Para trás! – gritou Faiald empurrando Edula bem no momento em que algo saltou da árvore, algo marrom como o musgo onde caiu, camuflado, e grande como um gato. Olhei a coisa atordoada, e pisquei.

            O bicho não era maior?

            Claro que era. Tinha o tamanho de um homem!

            Então como essa daí é tão "pequena"?

            Olhei fascinada a criatura que se aproximava de mim correndo pelo chão como um bicho de corda.

            “Vai ver”, tentei me consolar, “vai ver que essa daí é um filhote...”

            Pulei para o lado. Grande como um gato, eu pensava, só que a outra é maior ainda.

            Olhei de novo para cima e foi então que comecei a gritar.

            Havia dezenas de aranhas presas na teia, pendendo das árvores, balançando-se nos galhos acima de nós.

            – Cristo! É uma colônia de aranhas! – sussurrou Márcia toda arrepiada. Cíntia estava pálida demais e César mordia os lábios com violência.

            Eu continuava gritando.

            A capa branca, cuja fluorescência iluminava aquela parte da floresta, não era mais do que a imensa teia de uma colônia de aranhas. Por isso não havia pássaros, serpentes ou insetos naquela região: elas tinham devorado tudo o que não fugira a tempo.

            Faiald correu para frente, largando a espada e engatilhando a arma de cano duplo. Os outros reuniram-se ao meu redor, munidos de paus e das poucas armas que tínhamos.

            – Onde está Cezna? Onde está?

            Eu olhava para cima, aterrorizada, sentindo-me como se tivesse aberto uma ferida no meu cérebro por onde se derramava fogo e ácido. Aquilo não podia estar acontecendo. Não existem aranhas do tamanho de um gato, simplesmente não existem!

            Meus olhos se focalizaram sobre uma massa branca que agitava-se no meio das folhagens, as asas de bronze enredando-se cada vez mais nos fios pegajosos.

            – Faiald! – gritei. O ruivo voltou-se para mim e apontei-lhe com o braço onde estava Cezna. Uma das aranhas já quase sobre ele e três outras aproximavam-se. Damin apontou a espingarda ao animal mais próximo ao nosso amigo e disparou, transformando-lhe o corpo numa massa informe. As outras aranhas detiveram-se para devorar seus restos. As que estavam mais distantes se aproximaram com agilidade e pressa, num balé grotesco.

            – Vamos! – gritou ele. Brandiu a adaga e cortou a massa branca em torno de Cezna. – Enquanto essas ali se banqueteiam, podemos avançar!

            – Vamos recuar! – opinou César.

            – Estamos no meio da colônia – ofegou Bulbo com o punhal na mão. – Tanto faz voltar ou seguir adiante.

            – Andem! – empurrou-nos Márcia, desviando-se de um dos bichos. – Elas estão descendo!

            Com efeito, desciam atropelando-se, rolando pelos troncos como bolas de pelo hirto, até que tocavam o solo. Então abriam as pernas e punham-se a caminhar, medonhas feito pesadelos.

            – Corram! – gritou César, fazendo um gesto esquisito e resmungando algumas palavras. No mesmo instante, duas das criaturas mais próximas incendiaram-se, agitando as pernas em horrenda agonia.

            – Edula! Atrás de você!

            Edula voltou-se imediatamente, pálida, ágil, brandindo sua lâmina com decisão. Um animal caiu aos meus pés, partido em dois. O interior dele era uma massa de viscosidades pardas que escorriam para o solo e umedeciam a terra. Uma segunda criatura saltou para cima do corpo morto e atacou-o com abominável gulodice. Senti meu estômago se revolvendo de asco e tudo ficou escuro por um momento.

            Se eu cair agora, é o fim! – murmurei para mim mesmo. Mantenha-se de pé ! Ande com seus amigos, você está atrasando todo mundo. MEXA-SE!

            Comecei a caminhar lentamente seguindo o grupo. Era o máximo que eu conseguia fazer e me envergonhei disso, porque os outros estavam reagindo com firmeza. Cíntia, passado o primeiro pânico, agora segurava um galho seco com determinação, atingindo os animais com pontaria certeira, atordoando-os. Márcia imitava-a, embora não tivesse e mesma mira nem agilidade.

Súbito, uma das aranhas, um pouco menor do que as outras, mas nem por isso menos assustadora, conseguiu subir no ramo que ela segurava e correr em sua direção. Márcia largou o galho com um grito de alerta, mas era tarde demais. A aberração grudara-se em sua mão com os dentes vermelhos e lutava para agarrar-se com as patas peludas no braço de minha amiga. A irmã do mago abriu a boca, os dentes brancos sobressaindo-se na cavidade escura, mas não conseguiu gritar. Não saía nenhum som de sua boca aberta. Ela sacudia o braço e abria a boca e aquela criatura doentiamente GRANDE agitava as pernas em busca de apoio para o corpo com um abdômen IMENSO que pendia e pesava, balançando-se como uma bola de natal presa a um galho durante uma tempestade.

            Ergui o pé num chute e o bicho voou longe, feito uma bola de futebol.

            Mas antes, arrebentou na ponta da minha bota, como uma bexiguinha, cheia de água.

            Só que não era água.

            Era um ovo. Um ovo cheio de milhares de pequenas aranhazinhas brancas, mas não tão pequenas que eu não as visse. Fiquei olhando para elas, vendo como subiam no cano da bota, caiam no solo, corriam e saltavam. Tudo estava ficando muito escuro de novo. Cambaleei. Alguém segurou o meu braço.

            – Firme, Cida – disse a voz de César junto ao meu ouvido. Senti uma pressão na canela e quanto voltei a olhar, as criaturinhas tinham sumido e um cheiro forte de álcool subia lá de baixo.

            – O que aconteceu? – balbuciei, atordoada.

            – Que espécie de mago eu seria, se não fosse capaz de conjurar um bocado de álcool para acabar com essas crias? – ele respondeu me empurrando com força.

            – Vamos andando, não parem! – berrou Bulbo empurrando as minhas pernas. Eu segurei a mochila e concentrei-me na ponta das botas.

            Um passo. César, ao meu lado fazia gestos e coisas se queimavam à sua passagem. Dois passos. Alguma coisa pesou na minha mochila e depois deixou de pesar. Não me voltei para ver o que era nem que fim levara. Olhava para a ponta dos meus pés. Um, dois, um, dois, direita, esquerda, firme, não pare, não olhe para os lados, não olhe para trás, não olhe, não olhe, não olhe!

            Esbarrei no corpo de Cíntia, que ia na minha frente, amparando Márcia. O que fora mesmo que lhe acontecera? Senti os cabelos da minha nuca erguerem-se. Não, melhor não lembrar. Todos haviam parado. Todo mundo olhava para cima.

            Eu não queria olhar, Deus eu não queria ver!

            Ergui os olhos.

            Em meio ao silêncio em que estávamos mergulhados, podíamos ouvir o ruído dos galhos se vergando, estalando, estremecendo. Alguma coisa estava andando por cima da teia, no alto das árvores, alguma coisa pesada o suficiente para que os troncos oscilassem, ameaçando quebrar.

            Alguma criatura grande.

            A Sombra passou por cima de nós, alguns metros para a esquerda. A fluorescência branca tornou-se um opaco cinza e alguns pontos da teia afundavam em grandes bolsas e depois voltavam a se esticar como uma cama de borracha. Eu tremia. A floresta inteira estalava como uma escada velha quando um tio muito velho e muito gordo sobe por ela. Em algum lugar, em algum momento, a teia ia ceder. Ou então, uma árvore ia se quebrar.

            A sombra sobre nós, movia-se com lentidão. Parecia arrastar atrás de si uma bolsa enorme. O chiado daquilo escarnecia do silêncio com seu suave rumor. Foi se indo, andando, arrastando-se, distanciando-se lentamente.

            – Mexam-se – sussurrou Faiald e eu pulei como se ele tivesse gritado. – Andem, mexam-se!

            O seguimos ofegando de pavor. Bulbo, na retaguarda, adaga na mão, como se aquela lâmina minúscula pudesse fazer frente ao terror que se arrastava por cima da teia, fazendo a floresta gemer à sua passagem, olhava constantemente sobre o ombro. Ainda havia teias sobre nós, mas nos desviáramos e elas agora estavam vazias. Lá atrás, as árvores continuavam a rachar enquanto sustentavam a Sombra.

            Um, dois, um, dois, mais depressa, mais depressa, eu pensava. Tinha voltado para a ponta de minhas botas. Um, dois, um, dois, um, dois...

            Um...

            Paramos todos de uma só vez, como uma mesma criatura. Paramos em silêncio. Ouvindo.

            Dois...

            Uma árvore, lá adiante, estalou. Depois outra e mais outra, secas, breves e começaram a desmoronar como um jogo gigantesco de dominós, partindo-se como gravetos.

            Elas escolheram mal a trilha! Ah, meu Deus, elas escolheram mal a trilha, eu pensei vendo ao longe algumas árvores desmancharem-se como sonho, vergando ao peso da Sombra que arrastava aquele saco, o tio velho e gordo e sua imensa barriga rolando escada abaixo, gritando e vociferando!

            – CORRAM!– gritou Faiald nos mostrando uma única trilha mais visível na mata. – Corram e não olhem para trás!

            Corremos. Sim, senhor, como nós corremos! Arrastávamos Márcia, rasgávamos os mantos que se enredavam nos galhos, corremos até que o fogo invadiu as nossas entranhas e as pernas transformaram-se em câimbras puras. E aí corremos mais um pouco.

            Até que, finalmente, encontramos diante de nós uma daquelas muralhas de roseiras. Foi preciso muita coragem, mas terminei olhando para cima.

            A mata alta se erguia como a torre de uma catedral, enfeitada com distantes pedaços de cetim azul celeste.

            A Colônia ficara para trás."

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