domingo, 4 de abril de 2010

Ficção científica: Impulso

Nanotecnologia: até onde pode chegar uma coisa genial dessas?

Simone Saueressig

Tipo assim: a Nana era a gata mais gata da escola. E eu, o mané mais estúpido que já conheci. De onde que eu ia tirar coragem de pedir para ela ficar comigo?

Do Anderson, é claro.

O Anderson trabalha num laboratório da universidade. Vive com o nariz enfiado numas coisas muito estranhas. O trampo garante uns trocados no final do mês, mas eu não queria estar no lugar dele para nada. Ele é esquisito, passa dias sem tomar banho, não curte futebol e costuma citar uns sujeitos muito estranhos feito um tal "voltére", que ele adora. Mas é o único que escuta os meus dramas, e por isso eu o considerava a coisa mais próxima de um amigo que eu tinha.

Pois o Anderson já ia pela metade da segunda cerveja,- coisa ruim, porque ele não agüenta nem meio copo,  quando veio com a proposta:

- Se eu te der um material de primeira para ficar com a tal da Nana, você pára de molhar a minha camisa com ranho?

- Dá onde que você vai ter material para eu conquistar a Nana, nego véio? - duvidei.

- Não interessa. Quer ou não quer?

Achei que aquilo não cheirava nada bem.

- É um tipo de droga nova? -sussurrei.

- Eu trabalho com nanotecnologia, não com química, ô meu! - ele indignou-se, completamente alcoolizado. -Vai querer ou não vai querer?

Pensei um pouco, mas esquisitice e burrice é um material altamente intercambiável. Aceitei. Na tarde seguinte, ele apareceu enquanto eu estava em casa fingindo que estudava para o vestibular. Cumprimentou minha mãe com um monte de livros debaixo do braço e disse que tinha vindo para me ajudar. Nada como uma mentira como esta para conseguir passe livre pela dona Tânia.

- Tá aqui, ó. Isso vai resolver o teu problema, - ele anunciou depois de entrar no meu quarto sem me cumprimentar. Pôs na minha frente um frasquinho com a metade cheia de um líquido grosso e cor-de-rosa. Parecia remédio de bebê. Daí ele me estendeu um CD e um caderninho de anotações.

- Instala isso no teu PC.

Detesto que me dêem ordens. Fiquei olhando para ele.

- Me alegro em ver você também, Anderson. E isso aí, o que é?

- Eu não disse que ia te dar material de primeira para ficar com a Nana? Então, véio, isso aí é material de primeira. Instala isso no teu PC.

A Nana? O que a Nana, que era a pessoa que eu conhecia que menos entendia de computador, depois da minha mãe, tinha que ver com um programa para PC? Que eu saiba, a coisa mais complicada que a Nana maneja é um daqueles celulares que mal e porcamente recebem torpedos. Era o plano mais idiota que eu já tinha visto. Disse isso para o Anderson. Ele suspirou, gelado.

- Olha, cara, eu não tenho todo o dia, sabia?

Tá bom, tá bom, amigo é para essas coisas, não? Mesmo que não batam bem da bola. Agarrei o disco e liguei a minha máquina. Enquanto ele instalava o material do CD, limpei os farelos de pão com manteiga do teclado.

- Putz, eu não sei como esse negócio ainda funciona! - riu Anderson. Não gostei do som daquela risada, mas não disse nada. Fiquei olhando para a tela do computador com uma careta de nojo. O programa era um troço experimental com um desenho medonho de feio.

- Entra aí onde diz "impulso".

Entrei. Era fácil, só tinha outros dois ícones onde dizia "instala/desinstala" e "fechar", e eu já tinha instalado. Abriu-se uma janela com vários quadrinhos: "alegria", "tristeza", "festa", "estudo", "excursão", "cultura", "jogo", "viagem", "tesão", um monte de coisas.

- O que é isso? Material pornográfico? - eu quase me interessei.

- Não seja bocó, ô mané. Agora clica em, deixa eu ver, "estudo". Pode ser. Clica aí.

Cliquei. Apareceram duas janelinhas. Em uma pedia o número (qual número?) e no outro dizia "escreva sua mensagem". Embaixo, o botão do "enter".

- Bueno, bródi, a coisa é a seguinte, - ele sorriu e sacudiu o frasco diante do meu nariz de novo. - Isto daqui é um monte de neurorobôs, e isso daí é o programa que faz eles funcionarem. Você só tem entrar no site que eu vou te dar, escrever o código dos neguinhos aí onde pede o número, mandar a mensagem para eles usando uma linguagem que está no caderninho, e dar enter. E daí, pronto, a Nana vai fazer o que tu quiser. Literalmente.

Fiquei olhando para ele me sentindo um idiota.

- Não entendi. Como é que um monte de... de quê, mesmo?

- Neurorobôs.

- ... vão fazer a Nana fazer o que eu quero?

- Pô, véio, tá na cara!

- Só se for para você!

Anderson suspirou.

- Isso daqui é um punhado de nanorobôs, entendeu? Uns robôs bem pequenininhos. Você faz ela tomar e esse negócio vai direto para o sangue dela. Do sangue, vai para o cérebro, porque eles tem um programa especial que os faz procurar substâncias que a gente tem só no cérebro. Isto é, - ele acrescentou, maldoso, - as pessoas normais têm. Você, eu não sei.

- Tá, Anderson, e daí?

- E daí que uma vez instalados os nanorobôs no cérebro dela, você tem acesso a ela, inteirinha, entendeu? Você escreve a mensagem, dá enter, o computador envia a mensagem para um servidor que a reenvia para alguns dos nanorobôs via conexão de rádio. E eles fazem o serviço, ordenando aos neurônios onde estiverem instalados para disparar um monte de neurotransmissores que, em rede, gerarão um impulso. Por exemplo, você escreve aí na mensagem para ela estudar geografia, e ela vai passar a tarde com o narizinho lindo enfiado nos livros de geografia. Está captando as possibilidades?

Abri a boca para retrucar alguma coisa, mas não deu. Era muita areia pro meu caminhãozinho.

- Véééio! - eu disse, abobado.

- Você só tem de dar um jeito para ela engolir isso daqui, valeu?

Fiz que sim, segurando o frasco com o líquido rosa como se fosse um cristal fino, pronto para quebrar.

- Fui nessa. Amanhã você me conta, - disse Anderson saindo tão rápido quanto tinha entrado.

Claro que o Anderson era um otimista. Como é que eu ia conseguir fazer a Nana, e só ela, beber os nanorobôs? Ela está sempre rodeada de um punhado de amigas que bebericam sua água, mordiscam seu sanduíche e intercambiam sucos. Mas dei sorte, porque na saída da aula estava chovendo e eu era o único da turma que tinha ido de carro. Depois de deixar a Patrícia, a Letícia, e a Cris, cada uma em sua casa, me vi à sós com a gata no fusca que meu irmão mais velho me empresta às sextas-feiras.

Era o momento. Eu podia arriscar tudo e convidá-la para ir à festa do Tonico mais tarde. Eu podia dizer "gata, quer que eu te leve na festa, hoje à noite? Posso ir te buscar às dez. Depois a gente pega a suas amigas. E depois eu me comprometo a levar todo mundo para casa, topas? Faço qualquer negócio para ficar cinco minutos a mais contigo. Qualquer negócio, mesmo se der prejuízo. Pago todos os micos, busco todas as estrelas, digo todas as mentiras, o que você quiser, desde que você fique comigo hoje, amanhã, e depois de amanhã e depois disso também. Sou doido por você, Nana, acho você o máximo, mesmo que você torça o nariz para o Inter e viva falando no Brad Pitt, aquele idiota. Não me importa. Não me importa nada, nem mesmo que eu saiba que você não recusa nunca suco de abacaxi, mesmo se for batizado com nanorobôs, desde que você diga que sim, que eu posso ir te buscar às dez, para a gente ficar juntos na festa." Eu podia ter dito tudo isso, pagar o mico de me declarar e correr o risco de ouvir a risada irônica dela. Mulher tem dessas coisas não tem?

E eu podia ficar quieto feito um inocente, oferecer para ela o suco de abacaxi misturado com os nanorobôs que eu tinha na mochila, geladinho, pronto para tomar, e depois ir para o computador e me conectar com o cérebro dela. Era só escolher.

E como sou um mané total, ofereci o suco.

- E aí, véio, como é que foi?

Eu sorri. E não era para sorrir?

- Meu, aquele seus robozinhos são um milagre de Deus! Eu estou apaixonado por eles!

O Anderson me olhava com uns olhinhos espremidos. Sorriu.

- Achei que você estava apaixonado pela menina.

- Trouxa! - eu ri, satisfeito. A Nana tinha ficado comigo a festa inteira. Inteira! E tinha sido um barato, embora às vezes ela me olhasse de um jeito estranho, como quem se pergunta o que estava fazendo ali com um sujeito com o qual até dois dias atrás mal trocava um bom-dia. A Nana não é nenhuma santa, mas não é de ficar com um desconhecido, eu sei.

- Como é que foi?

Foi maravilhoso, eu queria dizer. Os beijos, eu tinha programado e tinham sido uma delícia, mas também tinha sido uma delícia ela descansar a cabeça no meu ombro, quando sentamos depois de dançar algumas lentas e isso eu não tinha programado. O corpo dela, macio e quente, contra o meu, o meu braço estreitando aquele ombro delicado, o perfume suave dela e o cheiro de suor e menta de sua pele, os cabelos roçando meus lábios, ou eu roçando os lábios no cabelo dela, sei lá! Quando deixei ela em casa, a Nana se inclinou para me dar um beijo de boa noite e eu espiei no decote dela e quase morri de vergonha e prazer. E quando ela disse meu nome, baixinho, eu me arrepiei todo, e desejei e achei que ela podia ficar falando assim, no meu ouvido, até a manhã seguinte. Eu não tinha programado isso, e foi muito melhor do que aqueles beijos quentes mas mecânicos.

Agora, tem coisas que a gente não confessa nem para o melhor amigo.

- Foi estupendo. Para a próxima festa, vou programar algo mais... mais... mais, entendeu?

- Então funcionou?

Eu o encarei surpreso.

- Cem por cento. Você tinha alguma dúvida, véio?

Anderson deu uma daquelas risadas abomináveis dele.

- Não, Cado. Nenhuma.

E sem dizer nada mais, deu meia volta e saiu da minha casa.

Não sei exatamente o quê, mas algo na atitude dele me fez ficar com a pulga atrás da orelha. Aquela risada cínica, aquele jeito salafo, sei lá. Acendi meu computador, me conectei com os nanorobôs e fiz a Nana ligar para mim.

Dali a pouco o telefone tocou.

- Oi!

Era ela.

- Oi.

Deu um silêncio daqueles que a gente detesta no telefone. Eu emiti um impulso: "diz que não consegue esquecer a noite de ontem".

- Ô Cado, sabe que eu não consigo tirar a noite de ontem da cabeça?

- É mesmo? - eu sorri.

- É

"Diz que ficou ligadona em mim".

Enter

- Fiquei ligadona em mim, - ela sussurrou. Eu estranhei e tirei as mãos do teclado. - O quê?

- Em você, quero dizer, - ela se atrapalhou. - Fiquei ligadona em você.

- Ah, é?

Então ela realmente dizia tudo o que eu teclava? Tudo?

"Diz: fiquei pensando em você a manhã inteira, fiquei lembrando dos seus beijos, fiquei pensando em ficar com você, de ficar nua com você, de ir para a cama com você, de fazer amor com você."

Enter.

Tô ficando canalha, pensei.

Ela:

- Eu fiquei pensando... eu fico pensando...

- No quê, gatinha? - era melhor ajudar, eu achei.

- Nos seus beijos, Cado!

Eu ri, satisfeito.

- Eu também, - confessei. Para ela dava para confessar.

- Gostei de ficar com você.

- Eu também.

- Eu fico pensando...

Diz, Nana, diz!

- ... numas coisas!

Ela riu, envergonhada. Eu também estava com a cara quente. A cara e o corpo inteiro.

- Que coisas?

Eu sei que sou insistente.

- Em ficar nua com você, de ir para a cama e fazer amor com você, Cado.

Nossa, eu queria ouvir aquilo para o resto da vida!

- Eu também, - sussurrei porque não conseguia falar mais alto. Não dava. A voz não obedecia.

- Eu sempre gostei muito de você, Cado, mas você nunca me dava bola, - ela continuou. - Eu não quero que você pense que tem que namorar comigo, só porque ficamos uma vez mas... eu queria te dizer isso. Eu gosto muito de você. Tô muito a fim.

Meu coração disparou no peito. Eu não tinha teclado aquilo! Eu nem em sonhos esperava por aquilo! Até que ponto o texto era meu? Até que ponto era dela? Até que ponto os neurorobôs do Anderson podiam ir? Será que eu estava disposto a descobrir? Nem sei o que me passava pela cabeça. Estava me sentindo um crápula de repente. Desliguei meu computador com um tabefe, limpei a garganta e continuei:

- Eu podia passar na tua casa mais tarde, a gente podia dar uma volta no centro, sei lá - eu propus, as mãos longe do teclado para ter certeza da resposta dela.

- Tá... legal! Vou ficar esperando. Vem logo, tá? Até depois!

Eu me despedi e desliguei. Era realmente engraçado, e depois não tinha mais graça nenhuma. Apesar de tudo, a Nana não parecia nada entusiasmada, parecia... parecia estar pensando em outra coisa. Fiquei na dúvida e a dúvida me baixou o astral: comecei a perceber que aquela brincadeira com os nanorobôs tinha um quê de amargo. Fiquei de olho no relógio e agüentei exatos doze minutos e meio. Depois levantei de um pulo e fui até a porta.

- Vai sair, meu filho?

- Vou, mãe. Vou dar um rolê com uma menina.

- Olha, tome cuidado, tá?

Tá, mãe, tá.

Até a casa da Nana era mais ou menos uns dez minutos de ônibus. Como não havia nenhum circular à vista, resolvi ir à pé, mesmo, que não levava mais do que vinte. Foram os vinte minutos mais legais da minha vida. Vinte minutos de planos e sonhos. Primeiro, eu ia levar ela para dar uma volta no shopping, com todo o respeito. Nada daquelas coisas que eu tinha escrito, o que é isso? Depois, eu ia desinstalar o programa dos neurorobôs do meu PC. Agora que o primeiro passo estava dado, a Nana já tinha ficado comigo e tinha dito que estava a fim, eu apostava como tudo ia correr às mil maravilhas. Estava pensando em perguntar para o ensebado do Anderson como ia fazer para desconectar a cabeça dela dos robozinhos, quando toquei a campainha.

Houve um movimento assustado na sala. A voz do Anderson disse, pertinho da janela entreaberta:

- Fica aqui, não atende, fica aqui que a pessoa vai embora!

A voz da Nana protestou, fraca, depois nada, nada, só aquele som horrível de beijos. Não agüentei. Entreabri a janela e espiei. Não é uma coisa bonita de se fazer, mas eu percebi que não andava fazendo coisas muito "bonitas". E, bem feito, quem mandou ser otário? Eu podia ter pensado que o Anderson ia ficar com o código de acesso dos neurorobôs. Eu podia ter pensado que ele só tinha me usado para testar a invenção. E que talvez ele não tivesse nenhuma intenção de retirar as máquinas da Nana, porque não se interessava em saber o que ela sentia.

Até onde os neurorobôs podiam ir? A pergunta voltou à minha cabeça enquanto eu via a garota dos meus sonhos entregando-se de olhos fechados para aquele sarnento. Até onde aqueles diabos tecnológicos podiam chegar? A resposta estava na cara.

Até o fim. Eles iam até o fim.