sexta-feira, 18 de maio de 2012

Conto infantil: Sir Humbert e o dragão


Você já ouviu falar em Sir Humbert do Campo Verde? Não? Pois não se preocupe. Ninguém ouviu falar neste cavaleiro, com exceção de sua dama, a dengosa Flor de Lis, que era bonita, mas tampouco famosa. O problema é que o sonho de Sir Humbert era ser tão conhecido quanto os Cavaleiros da Távola Redonda, os Nove do Anel ou aquele pessoal que procurava o Ouro dos Nibelungos, perdido no Reno.

–Ah, Betinho, mas isso não tem importância alguma, – ronronava Flor de Lis.

–Tem, sim! – bradava o cavaleiro de armadura reluzente, polindo o seu escudo com o brasão de família. –Quero ser referência da fina flor da cavalaria andante! Quero ser apontado nas justas e dar autógrafos nas feiras! Eu quero ser famoso com Lancelot!

Flor de Lis suspirava e balançava a cabeça e voltava ao bordado tamanho família que ela estava fazendo para decorar uma das paredes do castelo em que eles moravam que, diga-se de passagem, era tão frio que a moça preferia passar o inverno na casa do copeiro e sua família, uma casinha pequena e acolhedora, cheia de crianças alegres e com uma única lareira bem quentinha. E como Flor de Lis não parecia dar muita bola para seu sonho de fama, um dia Sir Humbert se revoltou, montou no seu cavalo Relinchante, e partiu em busca de aventuras que tornassem seu nome sinônimo de lenda.

Infelizmente, porém, o sujeito sempre chegava atrasado às ocasiões. Perdeu mais de uma oportunidade para salvar princesas de ogros e feiticeiros, foi finamente driblado em torneios por outros cavaleiros – tão ávidos por fama quanto ele, diga-se de passagem – e toda vez que chegava a uma aldeia conhecida por viver ao pé de um castelo encantado, encontrava os aldeões em festa porque “Sir Não-sei-das-quantas” ou “O Cavaleiro Sabe-se-lá-quem-era”, o tinha desencantado a não mais de dois ou três dias. Humbert chegou à Camelot na manhã em que o Rei Arthur decretou férias coletivas. Entrou em Tintagel, na tarde em que Morgana se retirava para passar um período de estudos em Avalon. Cruzou Osgiliach em direção à Minas Tirith, em Gondor, na última noite das festas de aniversário do Rei, e apareceu em Worms em um dia em que havia tanta neblina que não se podia enxergar o outro lado das estreitas ruas do burgo, quanto mais uma aventura em algum lugar remoto. Não, decididamente, a sorte não sorria a Sir Humbert! O cavaleiro já andava pensando que era um pobre coitado, literalmente, até porque sua bolsa de moedas andava mais leve do que seu estômago vazio, e o garboso Relinchante achava-se reduzido à pele e osso, como se fosse um simples pangaré. O coitado começava a cogitar a volta para casa e em terminar seus dias como um castelão qualquer, quando ouviu falar sobre um terrível monstro chamado Esminge que andava assustando viajantes em uma estrada próxima ao reino de uma certa rainha, cujo nome ele preferiu não saber, pelo menos não antes de topar com o bendito monstro e ter deixado de ser o cavaleiro mais desconhecido do mundo medieval.

Então, acompanhemos nosso valoroso herói estrada à fora, muito concentrado em ver na paisagem ao redor os primeiros sinais da presença do monstro. Olhos atentos. Mãos firmes, segurando a rédea. A viseira do elmo levantada, a lança pronta para ser usada. Suando à bicas, que dentro da armadura fazia um calor infernal, o cabelo colando na sobrancelha, uma coceira danada na orelha, uma coceira danada que ele não podia coçar porque o elmo era muito apertado. De repente, Relinchante vê um tufo de pasto especialmente apetitoso alguns metros fora da estrada e, ora, o pobre cavalo não via comida de verdade desde o dia anterior, assim que, apesar dos protestos e puxões na rédea, o bicho saiu da estrada e abaixou o pescoço para pastar. O nobre cavaleiro, atrapalhado com o movimento do animal, perdeu o equilíbrio e sem mais aquela caiu de nariz na terra, rolou um barranco e terminou meio enterrado na areia quente e branca da praia com um grito de susto. Relinchante levantou o focinho e o fitou com ar tolo, enquanto mastigava deliciado o saboroso petisco, e depois, ainda mais de repente quanto decidira sair da estrada, soltou um relincho espantoso, deu meia-volta e desapareceu a todo o galope, como se tivesse o diabo nos calcanhares.

Sir Humbert, não viu a cena. Ocupado em desenterrar o elmo da areia – elmo dentro do qual, diga-se de passagem, continuava enfiada a sua nobre cabeça, – só percebeu o galope selvagem de sua montaria perdendo-se na estrada. O cavaleiro finalmente conseguiu livrar a cabeça e sentar-se, ainda zonzo.

–Arram... hum, com licença... – comentou uma voz profunda, melodiosa e incrivelmente bem educada. – Será que o senhor se importaria de... bem, como direi... arram... de sair daí? Está sentado sobre a ponta da minha cauda, sabe?

O cavaleiro voltou-se de muito mau-humor, disposto a descontar tudo em cima do almofadinha que estava falando com ele, e deparou-se com a razão pela qual Relinchante saíra na disparada. E a razão era, como o leitor bem pode imaginar-se, ele. O monstro em pessoa! Aquilo só podia ser Eminge, porque nada era mais aterrorizante do que ele. E, bem Esminge era um dragão. Pés com garras enormes e afiadas, escamas grossas como a melhor couraça que Humbert já imaginara, uma barriga balofa, redonda e satisfeita, asas negras como a noite, um pescoço como a torre de uma igreja, uma cabeçorra imensa, horrenda, com um focinho enorme, dentes pontudos, grandes bigodes, olhos saltados e um imenso chapéu de palha, imenso, chamativo e de péssimo gosto!

–Oh... – fez o cavaleiro a ponto de desmaiar.

–O senhor está bem, eu suponho... – fez o monstro baixando ainda mais a cabeça, preocupado. – O tombo foi feio, mas espero que não tenha se lastimado.

Sir Humbert, diante da emergência da situação, lembrou-se de algo que haviam lhe dito há alguns anos: que a melhor defesa é a surpresa. Ou que o melhor ataque é a defesa. Ou qualquer coisa assim, não se pode pedir ao pobre que se lembre perfeitamente de algo diante de uma situação dessas. O caso é que Humbert pôs-se de pé o melhor que pode e, na falta de sua lança, lançou mão de sua espada, uma coisa ridícula que tinha comprado com alguns trocados num saldão de um ferreiro pouco antes de sair de casa. A espada era pequena, mal feita e sem fio, mas tinha um punho lindo e como até então Humbert não precisara sacar dela para nada, não tinha, ainda, pagado aquele mico.

O dragão, entretanto não riu. Fez um bico com o focinho imenso e estreitou os olhos como se avaliasse o inimigo que tinha diante de si.

–O senhor continua pisando na ponta da minha cauda, – soprou o fantástico animal. –Saia, antes que eu o tire daí à força.

Sir Humbert juntou toda a coragem que tinha e provocou:

–Experimente fazê-lo, sua lagartixa tamanho família.

Se Esminge achou aquela observação uma ofensa, não demonstrou. Debruou-se sobre o cavaleiro e ao invés de torrar o homem com um jorro de fogo digno de um vulcão, limitou-se a pegar Sir Humbert com a ponta do indicador e do polegar e levantá-lo de onde estava, como se fosse um inseto desagradável.

–Pronto, filho, – fez o bicho colocando nosso herói no chão. – Agora suma-se antes que eu perca a minha paciência. Preciso terminar meu banho de sol.

–Em guarda, monstro! Em guarda! – ameaçou Sir Humbert sem tomar conhecimento das palavras do dragão. Esminge revirou os olhos e suspirou uma baforada de fumaça.

–Ah, mas assim não é possível! Não é possível, entende? – disse ao cavaleiro. – Estou no meu horário de descanso. Des-can-so! Está no contrato, assinado e registrado na corte do rei Arthur para qualquer um ver! Desse jeito vou de me queixar ao sindicato!

Humbert piscou, surpreso pelo palavreado de Esminge. Algo no meio daquela algaravia – “contrato”, “registrado” e “sindicato” – o fizeram lembrar das férias coletivas em Camelot e por alguns segundos ele cogitou averiguar melhor aquela história. Claro que se tivesse se dado ao trabalho de querer ver o contrato descobriria que Esminge estava inventando uma história para afastá-lo dali, mas a oportunidade de fazer honra e fama estava ao alcance da sua mão – de sua espada diminuta – e não seria um pedaço de papel que ia afastá-lo de tudo o que buscara durante tanto tempo. Por isso, ele ignorou o discurso do dragão e replicou:

–Prepare-se monstro! Vou escrever meu nome na História com o seu sangue!

Esminge revirou os olhos e bateu com as unhas enormes na areia fofa.

–Ai, ai, gostaria de ter ganhado uma pérolazinha por cada vez que ouvi isso. Teria um tesouro duas vezes maior do que tenho – resmungou para si mesmo. Depois debruçou-se sobre Sir Humbert e deu um piparote em sua espada, que voou longe. Sir Humbert viu a lâmina reluzir na distância e recomeçou a suar – mas agora de medo. Estava diante de Esminge, só, desarmado, protegido por uma armadurazinha que não era nada para o bicho. Quando sentiu a cauda do dragão enlaçá-lo pela cintura, era tarde demais! O abraço das escamas apertava com firmeza sua barriga.

–Bem, mocinho, vamos ver se eu me explico com clareza – começou a criatura, a boca tão perto de Humbert que se ele estendesse o braço, poderia tocar um dos bigodes do bicho. Ou um dente. Mas ele, é claro, não fez nada disso, até que porque o bafo de Esminge era tão terrível que qualquer um ficava tonto só de senti-lo. –Eu não existo. Percebe? Sou um bicho imaginário. Mítico. Só existo nos pergaminhos de histórias. Uma alucinação. Entendeu?

Sir Humbert pôs cara de quem não entendeu e fez que não. Esminge sorriu – e, francamente, você não ia querer ver o sorriso dele, não ia querer mesmo, sobretudo àquela distância, com todos aqueles dentes...

–Meu caro cavalheiro... você está perturbado pela sua busca à fama – resmungou o monstro e horrorosas colunas de fumaça saíram pelo seu nariz. – E a prova disso é muito simples: você segue respirando?

Sir Humbert fez que sim.

–Seu coração ainda bate?

O cavaleiro prestou atenção um momento, depois concordou.

–Então, você ainda está vivo?

–Estou, – respondeu timidamente o cavaleiro.

–Esta é a melhor prova de que eu não existo, entendeu?

Sir Humbert pensou, pensou, esforçou-se mesmo, de verdade! Mas terminou muito confuso:

–Não... desculpe, eu não entendo. O que eu ainda estar vivo tem a ver com o senhor ser um monstro imaginário?

O dragão arreganhou os dentes numa ameaça mortal:

–Muito simples, meu amiguinho: se eu fosse real, já teria devorado você. E não estaríamos tendo esta conversa.

Desta vez Sir Humbert entendeu, e entendeu de verdade! Empalideceu como se fosse um nabo branco, desses que se põe na sopa, e estremeceu, apesar do suor e do calor.

–Bom menino, vejo que você entendeu o recado, – fez Esminge pondo o cavaleiro de volta ao chão e ajeitando o chapéu medonho na cabeça. Era realmente um objeto muito feio!

–Agora, meu caro cavaleiro, depois deste surto, você voltará ao seu reino e ficará famoso. Sabe como? Vai trocar essa sua espada ridícula por um alaúde. Cante coisas mais reais do que eu: amor verdadeiro e eterno, as belezas de sua amada, a alegria de uma casa feliz. Agora vá, vá de uma vez. Cante canções, escreva livros, invente aventuras. E não me preocupe. Se eu for real, o procurarei para pedir um autógrafo. Agora vá.

Sir Humbert piscou um pouco, pensou que, bem, podia ter perdido a cabeça e ao final só perdera uma espada rombuda e um cavalo magro e foi se afastado por uma trilha em direção à estrada. A medida em que se afastava do covil de Esminge percebia mais e mais o absurdo de sua aventura e terminou convencendo-se que, de fato, Esminge não existia, dragões são animais imaginários e tudo aquilo não passava de baboseira medieval. De volta à seu lar e aos braços de Flor de Lis, arrendou o castelo para quatro malucos que queriam abrir ali uma escola para jovens bruxos e comprou uma casinha vizinha à do copeiro, uma casinha quente no inverno e fresca no verão. Dedicou-se à compor músicas de amor que atraíram gente de todos os lados do reino e tornou-se, enfim, famoso.

Quanto à Esminge, depois daquela, e com receio de terminar encontrando um cavaleiro armado até os dentes que desse cabo dele, como haviam dado à outros nobres representantes de sua raça, como Smaug ou Fafnir, resolveu mudar-se. Fechou sua caverna e foi morar numa ilha do Caribe. E em vez de tomar sol junto às falésias, hoje toma sol debaixo dos coqueiros, bebendo suco de abacaxi, abanando-se com um leque enorme e ajeitando o horroroso chapéu de palha sobre sua cabeça. Qualquer um pode ir lá e ver. De qualquer maneira, ninguém irá acreditar mesmo.