domingo, 4 de abril de 2010

Ficção científica: Impulso

Nanotecnologia: até onde pode chegar uma coisa genial dessas?

Simone Saueressig

Tipo assim: a Nana era a gata mais gata da escola. E eu, o mané mais estúpido que já conheci. De onde que eu ia tirar coragem de pedir para ela ficar comigo?

Do Anderson, é claro.

O Anderson trabalha num laboratório da universidade. Vive com o nariz enfiado numas coisas muito estranhas. O trampo garante uns trocados no final do mês, mas eu não queria estar no lugar dele para nada. Ele é esquisito, passa dias sem tomar banho, não curte futebol e costuma citar uns sujeitos muito estranhos feito um tal "voltére", que ele adora. Mas é o único que escuta os meus dramas, e por isso eu o considerava a coisa mais próxima de um amigo que eu tinha.

Pois o Anderson já ia pela metade da segunda cerveja,- coisa ruim, porque ele não agüenta nem meio copo,  quando veio com a proposta:

- Se eu te der um material de primeira para ficar com a tal da Nana, você pára de molhar a minha camisa com ranho?

- Dá onde que você vai ter material para eu conquistar a Nana, nego véio? - duvidei.

- Não interessa. Quer ou não quer?

Achei que aquilo não cheirava nada bem.

- É um tipo de droga nova? -sussurrei.

- Eu trabalho com nanotecnologia, não com química, ô meu! - ele indignou-se, completamente alcoolizado. -Vai querer ou não vai querer?

Pensei um pouco, mas esquisitice e burrice é um material altamente intercambiável. Aceitei. Na tarde seguinte, ele apareceu enquanto eu estava em casa fingindo que estudava para o vestibular. Cumprimentou minha mãe com um monte de livros debaixo do braço e disse que tinha vindo para me ajudar. Nada como uma mentira como esta para conseguir passe livre pela dona Tânia.

- Tá aqui, ó. Isso vai resolver o teu problema, - ele anunciou depois de entrar no meu quarto sem me cumprimentar. Pôs na minha frente um frasquinho com a metade cheia de um líquido grosso e cor-de-rosa. Parecia remédio de bebê. Daí ele me estendeu um CD e um caderninho de anotações.

- Instala isso no teu PC.

Detesto que me dêem ordens. Fiquei olhando para ele.

- Me alegro em ver você também, Anderson. E isso aí, o que é?

- Eu não disse que ia te dar material de primeira para ficar com a Nana? Então, véio, isso aí é material de primeira. Instala isso no teu PC.

A Nana? O que a Nana, que era a pessoa que eu conhecia que menos entendia de computador, depois da minha mãe, tinha que ver com um programa para PC? Que eu saiba, a coisa mais complicada que a Nana maneja é um daqueles celulares que mal e porcamente recebem torpedos. Era o plano mais idiota que eu já tinha visto. Disse isso para o Anderson. Ele suspirou, gelado.

- Olha, cara, eu não tenho todo o dia, sabia?

Tá bom, tá bom, amigo é para essas coisas, não? Mesmo que não batam bem da bola. Agarrei o disco e liguei a minha máquina. Enquanto ele instalava o material do CD, limpei os farelos de pão com manteiga do teclado.

- Putz, eu não sei como esse negócio ainda funciona! - riu Anderson. Não gostei do som daquela risada, mas não disse nada. Fiquei olhando para a tela do computador com uma careta de nojo. O programa era um troço experimental com um desenho medonho de feio.

- Entra aí onde diz "impulso".

Entrei. Era fácil, só tinha outros dois ícones onde dizia "instala/desinstala" e "fechar", e eu já tinha instalado. Abriu-se uma janela com vários quadrinhos: "alegria", "tristeza", "festa", "estudo", "excursão", "cultura", "jogo", "viagem", "tesão", um monte de coisas.

- O que é isso? Material pornográfico? - eu quase me interessei.

- Não seja bocó, ô mané. Agora clica em, deixa eu ver, "estudo". Pode ser. Clica aí.

Cliquei. Apareceram duas janelinhas. Em uma pedia o número (qual número?) e no outro dizia "escreva sua mensagem". Embaixo, o botão do "enter".

- Bueno, bródi, a coisa é a seguinte, - ele sorriu e sacudiu o frasco diante do meu nariz de novo. - Isto daqui é um monte de neurorobôs, e isso daí é o programa que faz eles funcionarem. Você só tem entrar no site que eu vou te dar, escrever o código dos neguinhos aí onde pede o número, mandar a mensagem para eles usando uma linguagem que está no caderninho, e dar enter. E daí, pronto, a Nana vai fazer o que tu quiser. Literalmente.

Fiquei olhando para ele me sentindo um idiota.

- Não entendi. Como é que um monte de... de quê, mesmo?

- Neurorobôs.

- ... vão fazer a Nana fazer o que eu quero?

- Pô, véio, tá na cara!

- Só se for para você!

Anderson suspirou.

- Isso daqui é um punhado de nanorobôs, entendeu? Uns robôs bem pequenininhos. Você faz ela tomar e esse negócio vai direto para o sangue dela. Do sangue, vai para o cérebro, porque eles tem um programa especial que os faz procurar substâncias que a gente tem só no cérebro. Isto é, - ele acrescentou, maldoso, - as pessoas normais têm. Você, eu não sei.

- Tá, Anderson, e daí?

- E daí que uma vez instalados os nanorobôs no cérebro dela, você tem acesso a ela, inteirinha, entendeu? Você escreve a mensagem, dá enter, o computador envia a mensagem para um servidor que a reenvia para alguns dos nanorobôs via conexão de rádio. E eles fazem o serviço, ordenando aos neurônios onde estiverem instalados para disparar um monte de neurotransmissores que, em rede, gerarão um impulso. Por exemplo, você escreve aí na mensagem para ela estudar geografia, e ela vai passar a tarde com o narizinho lindo enfiado nos livros de geografia. Está captando as possibilidades?

Abri a boca para retrucar alguma coisa, mas não deu. Era muita areia pro meu caminhãozinho.

- Véééio! - eu disse, abobado.

- Você só tem de dar um jeito para ela engolir isso daqui, valeu?

Fiz que sim, segurando o frasco com o líquido rosa como se fosse um cristal fino, pronto para quebrar.

- Fui nessa. Amanhã você me conta, - disse Anderson saindo tão rápido quanto tinha entrado.

Claro que o Anderson era um otimista. Como é que eu ia conseguir fazer a Nana, e só ela, beber os nanorobôs? Ela está sempre rodeada de um punhado de amigas que bebericam sua água, mordiscam seu sanduíche e intercambiam sucos. Mas dei sorte, porque na saída da aula estava chovendo e eu era o único da turma que tinha ido de carro. Depois de deixar a Patrícia, a Letícia, e a Cris, cada uma em sua casa, me vi à sós com a gata no fusca que meu irmão mais velho me empresta às sextas-feiras.

Era o momento. Eu podia arriscar tudo e convidá-la para ir à festa do Tonico mais tarde. Eu podia dizer "gata, quer que eu te leve na festa, hoje à noite? Posso ir te buscar às dez. Depois a gente pega a suas amigas. E depois eu me comprometo a levar todo mundo para casa, topas? Faço qualquer negócio para ficar cinco minutos a mais contigo. Qualquer negócio, mesmo se der prejuízo. Pago todos os micos, busco todas as estrelas, digo todas as mentiras, o que você quiser, desde que você fique comigo hoje, amanhã, e depois de amanhã e depois disso também. Sou doido por você, Nana, acho você o máximo, mesmo que você torça o nariz para o Inter e viva falando no Brad Pitt, aquele idiota. Não me importa. Não me importa nada, nem mesmo que eu saiba que você não recusa nunca suco de abacaxi, mesmo se for batizado com nanorobôs, desde que você diga que sim, que eu posso ir te buscar às dez, para a gente ficar juntos na festa." Eu podia ter dito tudo isso, pagar o mico de me declarar e correr o risco de ouvir a risada irônica dela. Mulher tem dessas coisas não tem?

E eu podia ficar quieto feito um inocente, oferecer para ela o suco de abacaxi misturado com os nanorobôs que eu tinha na mochila, geladinho, pronto para tomar, e depois ir para o computador e me conectar com o cérebro dela. Era só escolher.

E como sou um mané total, ofereci o suco.

- E aí, véio, como é que foi?

Eu sorri. E não era para sorrir?

- Meu, aquele seus robozinhos são um milagre de Deus! Eu estou apaixonado por eles!

O Anderson me olhava com uns olhinhos espremidos. Sorriu.

- Achei que você estava apaixonado pela menina.

- Trouxa! - eu ri, satisfeito. A Nana tinha ficado comigo a festa inteira. Inteira! E tinha sido um barato, embora às vezes ela me olhasse de um jeito estranho, como quem se pergunta o que estava fazendo ali com um sujeito com o qual até dois dias atrás mal trocava um bom-dia. A Nana não é nenhuma santa, mas não é de ficar com um desconhecido, eu sei.

- Como é que foi?

Foi maravilhoso, eu queria dizer. Os beijos, eu tinha programado e tinham sido uma delícia, mas também tinha sido uma delícia ela descansar a cabeça no meu ombro, quando sentamos depois de dançar algumas lentas e isso eu não tinha programado. O corpo dela, macio e quente, contra o meu, o meu braço estreitando aquele ombro delicado, o perfume suave dela e o cheiro de suor e menta de sua pele, os cabelos roçando meus lábios, ou eu roçando os lábios no cabelo dela, sei lá! Quando deixei ela em casa, a Nana se inclinou para me dar um beijo de boa noite e eu espiei no decote dela e quase morri de vergonha e prazer. E quando ela disse meu nome, baixinho, eu me arrepiei todo, e desejei e achei que ela podia ficar falando assim, no meu ouvido, até a manhã seguinte. Eu não tinha programado isso, e foi muito melhor do que aqueles beijos quentes mas mecânicos.

Agora, tem coisas que a gente não confessa nem para o melhor amigo.

- Foi estupendo. Para a próxima festa, vou programar algo mais... mais... mais, entendeu?

- Então funcionou?

Eu o encarei surpreso.

- Cem por cento. Você tinha alguma dúvida, véio?

Anderson deu uma daquelas risadas abomináveis dele.

- Não, Cado. Nenhuma.

E sem dizer nada mais, deu meia volta e saiu da minha casa.

Não sei exatamente o quê, mas algo na atitude dele me fez ficar com a pulga atrás da orelha. Aquela risada cínica, aquele jeito salafo, sei lá. Acendi meu computador, me conectei com os nanorobôs e fiz a Nana ligar para mim.

Dali a pouco o telefone tocou.

- Oi!

Era ela.

- Oi.

Deu um silêncio daqueles que a gente detesta no telefone. Eu emiti um impulso: "diz que não consegue esquecer a noite de ontem".

- Ô Cado, sabe que eu não consigo tirar a noite de ontem da cabeça?

- É mesmo? - eu sorri.

- É

"Diz que ficou ligadona em mim".

Enter

- Fiquei ligadona em mim, - ela sussurrou. Eu estranhei e tirei as mãos do teclado. - O quê?

- Em você, quero dizer, - ela se atrapalhou. - Fiquei ligadona em você.

- Ah, é?

Então ela realmente dizia tudo o que eu teclava? Tudo?

"Diz: fiquei pensando em você a manhã inteira, fiquei lembrando dos seus beijos, fiquei pensando em ficar com você, de ficar nua com você, de ir para a cama com você, de fazer amor com você."

Enter.

Tô ficando canalha, pensei.

Ela:

- Eu fiquei pensando... eu fico pensando...

- No quê, gatinha? - era melhor ajudar, eu achei.

- Nos seus beijos, Cado!

Eu ri, satisfeito.

- Eu também, - confessei. Para ela dava para confessar.

- Gostei de ficar com você.

- Eu também.

- Eu fico pensando...

Diz, Nana, diz!

- ... numas coisas!

Ela riu, envergonhada. Eu também estava com a cara quente. A cara e o corpo inteiro.

- Que coisas?

Eu sei que sou insistente.

- Em ficar nua com você, de ir para a cama e fazer amor com você, Cado.

Nossa, eu queria ouvir aquilo para o resto da vida!

- Eu também, - sussurrei porque não conseguia falar mais alto. Não dava. A voz não obedecia.

- Eu sempre gostei muito de você, Cado, mas você nunca me dava bola, - ela continuou. - Eu não quero que você pense que tem que namorar comigo, só porque ficamos uma vez mas... eu queria te dizer isso. Eu gosto muito de você. Tô muito a fim.

Meu coração disparou no peito. Eu não tinha teclado aquilo! Eu nem em sonhos esperava por aquilo! Até que ponto o texto era meu? Até que ponto era dela? Até que ponto os neurorobôs do Anderson podiam ir? Será que eu estava disposto a descobrir? Nem sei o que me passava pela cabeça. Estava me sentindo um crápula de repente. Desliguei meu computador com um tabefe, limpei a garganta e continuei:

- Eu podia passar na tua casa mais tarde, a gente podia dar uma volta no centro, sei lá - eu propus, as mãos longe do teclado para ter certeza da resposta dela.

- Tá... legal! Vou ficar esperando. Vem logo, tá? Até depois!

Eu me despedi e desliguei. Era realmente engraçado, e depois não tinha mais graça nenhuma. Apesar de tudo, a Nana não parecia nada entusiasmada, parecia... parecia estar pensando em outra coisa. Fiquei na dúvida e a dúvida me baixou o astral: comecei a perceber que aquela brincadeira com os nanorobôs tinha um quê de amargo. Fiquei de olho no relógio e agüentei exatos doze minutos e meio. Depois levantei de um pulo e fui até a porta.

- Vai sair, meu filho?

- Vou, mãe. Vou dar um rolê com uma menina.

- Olha, tome cuidado, tá?

Tá, mãe, tá.

Até a casa da Nana era mais ou menos uns dez minutos de ônibus. Como não havia nenhum circular à vista, resolvi ir à pé, mesmo, que não levava mais do que vinte. Foram os vinte minutos mais legais da minha vida. Vinte minutos de planos e sonhos. Primeiro, eu ia levar ela para dar uma volta no shopping, com todo o respeito. Nada daquelas coisas que eu tinha escrito, o que é isso? Depois, eu ia desinstalar o programa dos neurorobôs do meu PC. Agora que o primeiro passo estava dado, a Nana já tinha ficado comigo e tinha dito que estava a fim, eu apostava como tudo ia correr às mil maravilhas. Estava pensando em perguntar para o ensebado do Anderson como ia fazer para desconectar a cabeça dela dos robozinhos, quando toquei a campainha.

Houve um movimento assustado na sala. A voz do Anderson disse, pertinho da janela entreaberta:

- Fica aqui, não atende, fica aqui que a pessoa vai embora!

A voz da Nana protestou, fraca, depois nada, nada, só aquele som horrível de beijos. Não agüentei. Entreabri a janela e espiei. Não é uma coisa bonita de se fazer, mas eu percebi que não andava fazendo coisas muito "bonitas". E, bem feito, quem mandou ser otário? Eu podia ter pensado que o Anderson ia ficar com o código de acesso dos neurorobôs. Eu podia ter pensado que ele só tinha me usado para testar a invenção. E que talvez ele não tivesse nenhuma intenção de retirar as máquinas da Nana, porque não se interessava em saber o que ela sentia.

Até onde os neurorobôs podiam ir? A pergunta voltou à minha cabeça enquanto eu via a garota dos meus sonhos entregando-se de olhos fechados para aquele sarnento. Até onde aqueles diabos tecnológicos podiam chegar? A resposta estava na cara.

Até o fim. Eles iam até o fim.

domingo, 28 de março de 2010

Fantasia dark: O sino de Santa Inês

Em uma parada fora do previsto, os passageiros de um ônibus se deparam com uma história fantástica em uma cidade do interior

Simone Saueressig


No quente princípio de dezembro, entre um cliente e outro, resolvi escapar do ruído da cidade de uma vez por todas e visitar uma amiga que vivia num tranqüilo povoado de Santa Catarina, arremedando umas férias que não terminavam de começar. Deixei Porto Alegre atrás de mim, Narciso meridional e luminoso que se reclina incansável sobre o Guaíba, e mergulhei na tarde-noite do fim de primavera, conduzida por um ônibus mais ou menos cheio, cujo ar condicionado cheirava à chiclé de tutifruti. Felizmente, depois que o sol desapareceu e a temperatura caiu, enquanto o ônibus subia a serra, o motorista nos fez a gentileza de desligá-lo e a viagem pode realizar-se sem maior incômodo do que o do vizinho da frente, que deitou o encosto de seu banco até quase tocar-me o nariz, e pôs-se a roncar como um motor estragado. Felizmente, sou uma pessoa que tem por hábito acomodar-se ao incômodo que os demais possam causar trabalho em casa e além de agüentar durante todo o dia as crianças do andar de cima correndo e gritando, agora tenho o prazer de ouvir como os obreiros executam uma reforma no andar de baixo. Deve ser a essas alegrias que se referem os estudiosos sociais, quando profetizam as vantagens de se poder trabalhar em casa, via ordenador.

Passado Taquara, consegui adormecer e sonhar que estava no meio do mar, tentando dirigir um minúsculo cargueiro à diesel. Não sei por quanto tempo dormi, mas a ausência de movimento que fez com que me despertasse de repente. Fora da janelinha vi uma cidadezinha quase tão minúscula quanto o navio de meu sonho, envolta em névoa e silêncio. As casas permaneciam fechadas, os jardins adormecidos e a escuridão mal quebrada pela lua minguante me fez pensar em alguma hora muito avançada da madrugada. As luzes das ruas eram escaças e tão distantes umas das outras, que mais pareciam ilhas em meio à um enorme e negro rio.

O ônibus havia parado junto a um bar. Baixei para esticar as pernas e encontrei o motorista que examinava uma roda com um ar cansado. Vários dos passageiros já se encontravam por ali, vagando junto ao homem, ou entrando e saindo lentamente pela porta iluminada.

– Teremos de empurrar? – perguntei, sonolenta. O motorista sorriu sem nenhum humor.

– Já foram chamar um mecânico – afirmou.

– Qual é o problema?

– A roda faz um barulho estranho – asseverou uma senhora de cabelos tão brancos como uma nuvem.

– Bem, tomarei um café – comentei e sem esperar resposta, entrei no bar.

Tratava-se de um autêntico bolicho e observei-o com uma curiosidade cansada. A barra era de madeira lustrosa e limpa, coberta dos círculos escuros que deixam os copos de cerveja e pinga quando estão molhados. Detrás dela havia uma prateleira com diferentes garrafas expostas, sobre as quais tiquetaqueava um relógio com mostrador de coca-cola. O espaço era amplo, e fresco, com mesas quadradas que se faziam acompanhar por um cinzeiro de plástico negro no centro e suas quatro cadeiras. Um pequeno espaço vazio denunciava eventuais bailarinos. O chão era de assoalho e estralava quando a gente andava sobre ele, ecoando sisudo pelas paredes caiadas de amarelo e bege, cheirando a fumo e cachaça, onde uma série de enormes janelas que se recortavam à cada dois ou três metros.

Me estranhou que não houvesse nenhuma delas aberta. Todas permaneciam fechadas em muda negativa de sua função. Estavam reforçadas e as trancas eram enormes borboletas de ferro negro com uma aparência inexpugnável. Por um instante pensei que não eram parte da janela, que em realidade eram imensas mariposas de asas marrons, aveludadas, os corpos gordos revestidos de uma espécie de penugem repugnante, as antenas alertas ao menor movimento. Estremeci, mas não de frio, e preferi dar as costas à porta aberta do que às janelas fechadas.

Apesar das janelas, o que realmente chamava a atenção no bolicho, era sua intensa iluminação. Absolutamente todas as luzes – e havia muito mais lâmpadas do que parecia necessário – estavam acesas. À princípio, pensei que era impressão minha, já que estivera dormindo, mas quanto mais tempo passava ali, mais me dava conta da profunda iluminação que jorrava à cântaros pela porta.

– Um pingado, por favor – respondi ao camareiro que me indagara bruscamente, o que ia tomar. Reparei que parecia incômodo. Talvez já fosse hora de estar em casa, raciocinei. Nessas cidadezinhas do interior, as pessoas costumam dormir muito cedo. Quando pôs diante de mim a pequena taça, onde deixou escorrer algumas gotas de leite sobre o café escuro, percebi que tinha as mãos trêmulas. Sua testa, cor de cuia, brilhava sob as luzes intensas, como se estivesse suando. Tinha uma aparência sisuda e pouco gentil, acentuada pelas sobrancelhas grossas e o bigode escuro.

– Como se chama este lugar? – interessei-me, concentrada em estudar o sério personagem que tinha diante de mim. Ele levantou uns olhos tão negros quanto a noite que havia do lado de fora e, se é possível, tão frios quanto ela.

– Santa Inês.

Voltei-me, surpresa. Quem respondera não fora o camareiro, mas um velhote de aparência mirrada e com um tom inconfundível de bêbado na voz. Estava encolhido sobre uma cadeira, o olhar fixo no único copo que havia diante de si – vazio. Percebi que era o único cliente que não fazia parte do grupo de passageiros, e que os que ali se encontravam faziam uma volta quando tinham de passar pela mesa, situada justo diante do banheiro feminino. De sua parte não recebiam nem mesmo um olhar. O homem parecia não se dar conta do estranho movimento que ocorria ao seu redor, alheio a qualquer coisa que não fosse o pequeno copo branco.

Sentei-me na mesa ao lado, observando-o com atenção. Apesar do ar acabado, não parecia tão velho quanto eu julgara à princípio. Tinha profundas olheiras e rugas, mas o que me dava aquela impressão desagradável era o tom macilento da pele. Iniciamos um curto diálogo que por parte dele se saldava quase unicamente com monossílabos. Soube que ainda não estávamos em Santa Catarina, e que aquela não era a parada costumeira do ônibus. Que era uma cidade pequena, pequeníssima, que aquela hora ia ser difícil encontrar um mecânico que se resolvera a vir, e que o mais recomendável seria seguir viagem com a roda fazendo ruído. E ao final, depois de responder às minhas perguntas com um sim e com um não, emitiu uma série de palavras que, à princípio, me pareceram o mais estranho que já ouvira em minha vida:

– Esta hora é muito tarde. Já não vai querer vir. É pela igreja, sabe? Às doze, a igreja de Santa Inês sempre dá às horas. Mas só as doze. Não virá – pelo menos acho que não virá... não, não virá. Depois, talvez, mas agora... agora não. E eu acho que devíamos fechar a porta do bar. Ou, talvez, baste estar com as luzes acesas.

Pisquei aturdida.

– Crê que o balconista vai nos por para fora? – indaguei estupefata. O homem me encarou sobre a mesa e pela primeira vez pude ver-lhe os olhos de um azul aguado e esgotado.

– É claro que não!

A indignação dele era tão grande, que tocava as raias da comédia.

– Ah – fiz, com um ar que, esperava, era um ar de tranqüilidade. Mas o riso brincava em meu peito e me dei conta, com um sobressalto, que era um riso nervoso.

Tinha um nó no estômago. Não poderia tomar o café, nem que disso dependesse a minha vida. Minha garganta se estreitava tanto que chegava à doer.

– E por que não virá o mecânico? – perguntei.

– Já disse. É pela igreja. À meia-noite soará o sino. Não é bom andar por aí à meia-noite. É muito tarde e as pessoas daqui dormem cedo.

– Por causa da igreja ou por que é tarde? – me perdi. Ele olhou para fora, nervoso, enquanto acendia um cigarro. Aproveitei o momento para olhar o relógio da Coca-cola, que havia sobre as inúmeras garrafas do mostrador atrás do balcão. Era quase onze e meia. Por um instante pensei que meus olhos me pregavam peças, porque pensava que já era de madrugada, tão largos e enfadonhos me parecia a viagem e os sonhos que ela havia provocado.

– Por causa da igreja e porque é tarde.

Acenei com a cabeça como se soubesse com que estava concordando, mas não sabia e isso ficou claro quando me perguntou em tom confidencial:

– Lembra da Lurdes?

E antes que eu perguntasse um desastroso "quem?", prosseguiu, em um tom tão baixo que eu tive de esforçar-me para ouví-lo:

– Lembro dela, como se a tivesse visto hoje pela manhã.

Olhei para o balconista, que encolheu os ombros e fez um gesto junto à têmpora que deixou bem claro por onde iam as idéias de meu interlocutor.

– Nunca saia de casa. Só para ir à igreja. Poder vê-la pela janela era tudo o que eu pedia quando me deitava pelas noites. Durante toda uma temporada, só havia uma palavra na minha cabeça, um desejo em meu coração e toda vez que eu olhava o mundo ao meu redor só via Lurdes.

Inclinei-me curiosa, porque a medida em que ia falando, a voz desaparecia dentro dele, como que fugindo para algum abismo interior.

Em 1949, Santa Inês eram três casa, uma igreja e um bolicho, e Lurdes tinha 16 anos. Diziam que estava comprometida com um moço da capital, mas o moço nunca vinha, Lurdes nunca ia e o carteiro –que serve de portavoz nestes românticos casos– nunca vinha à casa da menina, de modos que bastava pensar um pouco para saber que tudo era mentira. Quem a inventara fora a mãe de Lurdes, convencida que estava de que sua prendada e virgem filha não tinha outra idéia na cabeça que a de esperar eternamente sentada por um milagre –já que nenhuma outra coisa poderia fazer com que um jovem da capital viesse dar naquele lugarejo e naquela casa em particular. E em que pensava Lurdes? Em nada. Tinha a cabeça cheia de vento, um vento fresco e louco, que cheirava à primavera e dezesseis anos. Passarinhos andavam onde sua mãe pensava que havia pensamentos cheios de pureza. Não lhe interessava nem os bordados, nem as lições de etiqueta, nem a impossibilidade de um marido. Seus olhos vagavam pelas nuvens, pelos pintos da choca e ultimamente andavam acompanhando, cobiçosos, os gaúchos, quando passavam. Não cantava, porque não tinha ouvido nenhum, não lia os parcos livros, espalhados pela casa, nem mesmo a Bíblia, velhusca e empoeirada, porque mal sabia escrever seu nome. Tampouco lhe interessavam os números. Às vezes brincava com suas bonecas de louça, mas seus jogos eram cada vez mais selvagens e havia quebrado uma delas na semana em que chegou o Quichúa.

O Quichúa veio do norte, num dia quente como o inferno. Carregava uma sela nos ombros. Jurava que seu cavalo tinha morrido há algumas léguas dali, mas tinha gente que dizia que nunca tivera cavalo. Arrastava atrás de si um carrinho cheio de instrumentos e grandes moldes, que por si só haveriam atraído a atenção de qualquer um naquele lugarejo. Parou no bolicho para tomar algo para a sede, e quando terminou espantou as pessoas que tinham se juntado em torno do carrinho, como que espanta um bando de moscas. Alguém lhe perguntou que fazia com tudo aquilo, e ele respondeu num espanhol que revirou entranhas e recordações, que fabricava sinos.

Mal ouviu-se isso e apareceu o padre da igreja, sem que ninguém soubesse explicar se estivera ouvindo atrás da porta, mesclado com a gente, ou se alguém o fora chamar. O caso é que a igreja de Santa Inês não possuía um sino. O dinheiro que a levantara deixara de manar quando morrera seu rico benfeitor, o seu Pastriano. Os herdeiros – a quem o padre se referia como "aqueles sem-vergonha de Porto Alegre"– , eram evangélicos e pouco dados às coisas do divino. Repartiram a fazenda do velho entre si ignorando completamente as insistentes cartas do padre de Santa Inês. E foi assim que com o passar do tempo, a alta torre de granito, nova em folha, ficou sem um sino de responsabilidade. Tinha, isso sim, uma campainha ridícula que desde baixo nem sequer se podia ver, quanto mais, ouvir o agudo timbre de lata.

Assim que ao ouvir tal afirmação, o Padre Tenório lançou mão de toda sua capacidade de adulação e retórica que, ao fim e ao cabo, tinham sido os verdadeiros instrumentos para arrancar o dinheiro que construira Santa Inês. Levou o estrangeiro à sua casa, prometendo pousada por uma noite e no espaço de poucas horas descobriu que o homem vinha fugindo de crimes terríveis que, segundo ele mesmo, o levariam diretamente ao Inferno – crimes, que, à bem da verdade não interessavam ao padre, que não fez nenhum esforço para conhecer os pormenores. Dedicou-se dom Tenório a convencer-lhe que podia salvar-lhe das chamas terríveis; a prometer-lhe a salvação da alma; a garantir-lhe perdão. E tudo isso em troca de um único favor: um sino para Santa Inês.

É verdade que o Quíchua levou um susto ao ouví-lo e ficou largo tempo em silêncio, meditando. Por fim, selou um trato: faria o sino primeiro, e o padre o absolveria depois. E por fim, partiria para uma nova vida em outros lugares, e deixaria ali, como selo definitivo de sua esperança por uma existência melhor, os instrumentos que utilizava. Concluídas as condições secundárias (onde montariam a forja, onde dormiria o índio e o que comeria), deram o trato por concluído e apertaram-se as mãos. E cada qual sonhou, naquela noite, com o que mais desejava: o padre com o bronzeado repique soando por todas as coxilhas, e o Quíchua com um esperançoso esquecimento.

Contrataram a um dos jovens que habitualmente freqüentava o bolicho, para ajudar no trabalho duro. Era um tipo baixo e atarrancado, de origem italiana e índia –o que lhe valera o apelido de Gringo– e o emprego pareceu fazer-lhe feliz. Em alguns dias os homens montaram a forja nos fundos da casa do padre, que, casualidade ou não, dava para os fundos da casa de Lurdes, onde um retângulo de vidro se abria ao seu quarto.

Não se sabe quem viu a quem primeiro: se foi Lurdes que deu-se conta daquele dorso suado e maduro, daquelas mãos poderosas que se movimentavam em torno do fogo, como se fossem ambos a mesma coisa; ou se foi o Quíchua que observou como a menina trocava de roupa, quiçá inocente, quiçá nem tanto, diante da janela, sem se preocupar de, sequer, correr as cortinas. Não que se desnudasse completamente: isso estava reservado ao banheiro sem janelas, onde tomava banho uma vez por semana. Mas sempre levava, por baixo da camisola grossa com a qual dormia, um conjunto de algodão e rendas que revelava curvas e pedaços da pele alva. Em breve o Quíchua já não sonhava com a benção do esquecimento, mas com curvas e peles alvas. Mas, talvez, ao revés de tudo, quem viu primeiro a quem foi o Gringo à Lurdes trocando de roupa, muito antes que ali de pensasse em montar uma forja para fabricar um sino para o campanário de Santa Inês.

Em questão de dias, Lurdes deixou de lado as bonecas de porcelana. De repente, se tornou admiradora da impressionante arte de lavar a roupa. De repente, já ninguém, nem a mãe, nem Janaína, a empregada, sabiam fazê-lo bem. Dedicou-se à passar horas e horas lavando os lençóis, o enxoval recém bordado, as grossas saias de lã, tudo lavado no tanque dos fundos, onde corria a água pura da sanga que passava ao lado da propriedade. Se molhava sem preocupar-se; molhava a saia que se colava às coxas – e por instantes pensava em grandes mãos tocando-as sem pressa– e ao triângulo entre elas – e ali, talvez, sua própria água se misturasse à da sanga. Molhava a blusa e o tecido se pegava ao corpinho, e então quem pensava em mãos tocando curvas era o Quíchua. E depois de estender tudo e de espiar a forja pelas frestas entre os panos, a menina se metia no quarto, ao dizer da mãe, rendida de cansaço. Devia ser por isso de dormir fora de hora que não conciliava o sono pelas noites, que a mãe encontrava vagando pela casa com um ar de louca, e que uma vez a encontrara com a porta da cozinha meio aberta, em plena madrugada, um pé pronto para transpassar o umbral. Mas também é verdade que foi um verão largo e quente.

De sua parte, o Quíchua se aliviava com tudo quanto era ovelha que passava ao alcance de sua mão. Tomava banhos noturnos na sanga fria e desejava com tal insistência que a menina também o fizera, numa coincidência impossível, que seu corpo aquecia a própria água, de modo que pela manhã as ervas das margens despertavam murchas e frustradas como o desejo morto. O Gringo, que passava desapercebido por Lurdes, e era praticamente ignorado pelo Quíchua, tudo via, tudo ouvia, mesmo aquilo que não se traduzia em palavras. Afundou num silêncio furioso e vingativo. Sujava de barro os lençóis recém lavados, quando ninguém estava olhando, deixava apagar o fogo da forja, misturava os papéis onde o índio ia desenhando o sino, rasgava rascunhos, queimava anotações. Santa Inês era muito pequena. Já não poderia comportar tudo aquilo, sem entornar o caldo.

Não obstante o desejo distender o tempo como um elástico, o tempo em si mesmo permanecia intocável em seu caminhar. E assim, chegou o dia em que o bronze, o estanho e o cobre que o padre trouxera em longas peregrinações estava todo ali, e as formas de barro dos sinos estavam prontos para receber a massa ardente. Ao padre Tenório pareceram pequenas. Quase tanto quando as ridículas sinetas que seguiam tentando, inutilmente, fazer-se ouvir. O Quíchua explicou que não. Explicou que não era um fazedor de sinos normal, que era um pishtaco , e que tinha uma receita infalível para fazer com que o sino fosse ouvido até no céu fosse qual fosse seu tamanho. E que receita era essa? curioseou dom Tenório, demasiado tarde. Empalideceu o índio, gemeu baixinho, disse algo em sua língua materna e sacudiu a cabeça. Segredo de profissão, afirmou sem dar outra resposta. E o padre teve de contentar-se – pela primeira vez em muitos anos– em ir dormir sem dar satisfação à sua curiosidade.

Naquela noite, depois que tudo mergulhou no silêncio, o Quíchua se sentou perto da porta, esperando pelo Gringo a quem havia pagado por adiantado para vir ajudá-lo à verter o metal fervente dentro da forma. Sentou-se com um cigarro apagado na boca e com o grande facão, que era sua principal ferramenta de trabalho, sobre os joelhos. Dissera que trabalhariam pela noite porque era mais fresco, e era mentira. Mas era a sua última mentira, o seu último pecado, se o sino estivesse feito pela manhã e se não rachasse ao tirá-lo do molde e se não quebrasse ao soar pela primeira vez. E depois, a absolvição, a alma à salvo dos enxofres e gases infernais. Valeria a pena.

Então ouviu aquele ruído leve na grama e um vulto parou junto à entrada do fole. Todos os seus nervos se retesaram e ele levantou-se muito devagar, tão devagar que alguém que estivesse olhando para aquele lado não o teria visto levantar-se, acreditaria que ainda estava agachado, e que apenas uma sombra se movera. E aquela sombra, que nem sequer respirava, avançou em silêncio. Avançou e esperou, e ouviu outra vez, como se pudesse ouvir o som dos músculos do rapaz movendo-se, talvez advertido pela escuridão. Deveria ter acendido a luz para tranqüilizá-lo, pensou, mas fazia muito tempo que usava a escuridão como aliada, e era a última vez, que fabricava um sino e não queria correr riscos. Talvez chegasse a pensar que o Gringo poderia também querer utilizar a escuridão como aliada. Talvez chegasse a imaginar que não fora o parco salário prometido pelo padre, o que trouxera o jovem tão prontamente ao trabalho duro. Talvez. Levantou a ponta do facão e esperou, esperou como se ainda estivesse acocorado com o cigarro apagado na boca, quase sem respirar, buscando ouvir por cima do pulsar enlouquecido das veias. Assim esperou.

Então apareceu uma cabeça no vão da entrada e o índio moveu-se com rapidez. Agarrou a vítima pelo cabelo, estirou o pescoço e cortou-o limpamente. O sangue jorrou, mas ele havia instalado um comedor de porcos naquela altura, pela manhã, de modos que praticamente não sujou o chão. O corpo debateu-se com uma força absurda, depois foi perdendo força e finalmente terminou inerte nos braços do homem. O Quíchua acendeu o cigarro – finalmente – e então, sob a luz do fósforo, compreendeu que o rapazito não viera e quem viera, Deus sabia por que, era a menina da casa ao lado. Soltou o corpo com um gemido e por pouco não caiu sobre a forja. Sentou-se ao lado dela, sem entender nada, que diante de semelhante coisa, todo homem é ignorante. Suas mãos hábeis rasgaram a camisola, penetraram em seu sexo e esquadrinharam seus segredos. E gemeu de desespero e terror, gemeu por sua alma danada, chorou como um menino.

Lurdes ainda era virgem.

Apesar do horror que o invadiu distender o tempo como uma borracha, o tempo em si mesmo seguia intocável em seu deslizar, e o tempo urge. Levantou-se, amarrou os pés do cadáver com uma corda que já tinha passado por uma roldana, e o pendurou sobre o curral dos porcos, até que dele saiu todo o sangue. Depois, levou-o até um gancho que tinha na parede da forja e o cravou firmemente pelos ombros. Só então acendeu o lampião.

Contemplou a morta com dor e pena. Que susto congelara aqueles olhos! Que medo sacudira por última vez sua boca! Que cheiro de desejo e sangue emergia de seu sexo, enorme e cabeludo, intocado por homens enquanto vivo, motivo de eterna danação enquanto morto. Cortou as carnes de Lurdes em finos e precisos talhos, justo onde a pele se transforma em carne, e debaixo dos pés grandes e firmes, depositou uma bacia de prata.

Enquanto esperava a gordura escorrer do corpo da jovem, derretida pelo calor, avivou o fole e limpou o curral. Trabalhou a noite inteira, destilando gordura humana e recolhendo-a na bacia de prata. À princípios da manhã, quando o sol já vinha nascendo, queimou o que restara de Lurdes e seu desejo no forno e misturou a gordura com o bronze e o estanho. E ao final, quando já nascera a manhã, quando Lurdes era só mais uma lembrança, derramou o composto maldito na forma do sino. O Gringo não foi trabalhar naquele dia.

Durante toda a semana em que esperou o sino esfriar, o Quíchua preparou-se para o pior. Buscaram pela menina por todos os lados, reviraram a sanga de tal maneira que o sangue nela derramado se mesclou com a lama e já não era possível distinguir o que fora Lurdes da terra que gerara Lurdes, assim como já não era possível distinguir o que fora Lurdes do sino que fabricara o Quíchua. Prenderam o Gringo, que foi encontrado bêbado junto à porta de um prostíbulo, em São Franscisco, mas depois o soltaram. A polícia foi até a forja, fez algumas perguntas e o índio, com a prática que o mundo ensina, mentiu uma e outra vez, mentiu até que mesmo ele acreditava que Lurdes jamais pisara na forja. Que jamais tocara seu corpo. Que jamais passara qualquer coisa que lhe perguntavam os policiais. E durante todo esse tempo, Lurdes estava ali, ou pelo menos uma ínfima parte de Lurdes, ali estava, repousando no molde, ao lado do sargento que lhe perguntava se a vira. Ali estava Lurdes, quando vinha o padre observar o progresso do sino, progresso que não era mais do que esfriar, como uma galinha que não perde de vista seus pintos, no processo de crescer. E ali estava ela, quando por fim se via sozinho e reavivava a forja para fazer a comida, e quando acariciava o molde como quem acaricia uma mulher, e desejava haver tido a luz acesa antes de brandir o facão, mais do que desejara qualquer coisa em sua vida.

Finalmente, uma semana depois, abriu o molde. Veio o padre e meia dúzia de beatas e o índio teve de quebrar a forma diante de todos eles, e cada vez que derramava água nas cunhas que iam quebrar o barro, gemia. Quando finalmente o estranho ovo se rompeu e o sino surgiu, seu coração se fez pequenino no peito, porque da campana bronzeada e perfeita, escorria um suor dourado, e ao tocá-lo com um martelinho, o som ecoou belo e forte, retumbou dentro da forja, e nesse momento o lume quebrou-se.

Então o índio soube que para ele não haveria salvação possível.

O penduraram festivamente na torre, algumas semanas depois do desaparecimento de Lurdes. O engrinaldaram, houve discursos e uma comilança histórica. O evento mereceu, inclusive, a presença do fotógrafo do "Notícias de São Francisco", já que o jornal, filho do papel, se via incapacitado de reproduzir o repique bronzeado e alegre.

Na hora de inaugurá-lo, entretanto, o sino se negou a cantar. O badalo, feito de idêntico material que a campana, batia inutilmente na matéria inerte e muda e o padre Tenório pensou que ia ter um enfarto. O Quíchua escapuliu-se antes de que alguém o pilhara, mas voltou à noite, quando todas as lágrimas de raiva do padre já havia secado e podia dedicar-se à escrever um sermão sobre a incompetência e os castigos infernais. O índio entrou sorrateiro na igreja e subiu ao campanário para admirar sua mais perfeita e danada obra, que cintilava leve e dourada. Para suplicar perdão, talvez, mas não à Deus.

À meia-noite, de repente, sem aviso algum, o campanário deu as horas. Doze horríveis badaladas se derramaram sobre as casas e o bolicho. Doze medonhos golpes gritaram o grito que Lurdes no pode dar, todos eles ao mesmo tempo, o grito de medo, o grito de agonia, o grito de gozo que se perdera em sua garganta. O índio, ao lado do bronze, enlouqueceu. O padre caiu morto de susto. E Santa Inês nunca mais foi a mesma.

– Lurdes nunca o perdoou. Ali segue o homem, esperando que ela se digne a tocar quando o padre puxa a corda, e não quando lhe dá na telha. Passa noite trás noite suplicando seu perdão, e quando chegam as doze ela soa e ele corre por Santa Inês e despedaça a quem encontra. Não come, não bebe, não dorme. Não respira. É uma sombra no campanário, esperando. Se fundiu à escuridão em que se escondia para matar, é parte dela, vive dela, como quem respira o ar. Dizem que a única maneira de fugir de suas garras é por-se na luz. Dizem que só alcançará o perdão que lhe prometeu o padre Tenório quando chegue o dia do Juízo Final.

– Seu Beneto, para de espantar a moça – ordenou o balconista, seco. Depois olhou para mim e fez o que parecia um sorriso. – Isso é história para boi dormir, dona. A tal da Lurdes fugiu com um caixeiro viajante, isso tá na cara. Foi o que a polícia disse.

Afastei-me com um aceno de cabeça e me parei junto à porta, observando o motorista que, encostado no ônibus compartilhava conversa e perdia a paciência junto com outros três passageiros, por causa da demora do mecânico. A história que me contara o bêbado terminara de me despertar e aspirei profundamente o ar frio e leve, ar de noite serrana, de noite com estrelas, de névoa noturna e úmida.

Observei que o vulto da igreja se erguia justo atrás do ônibus, a fachada principal mergulhada nas sombras vigiando o povoado mergulhado em sonhos. Parecia uma construção de linhas duras e descomunais. Destacava-se por ser mais escura que a noite, maciça e ameaçadora, as esquinas afiadas como bordes de navalhas. A torre, quadrada e reta, recortava-se áspera, imitando almenas. E, não obstante a crueza das linhas, parecia que algo se enredava em torno dela, algo orgânico e sórdido que o olho não alcançava com a presença da luz, mas com sua ausência.

Recuei um passo, e me coloquei completamente debaixo da forte iluminação do bar, como se obedecendo a um instinto. A claridade reinante ofuscou-me e, bendito seja Deus, a igreja desapareceu de minha vista.

– Ei, vocês! – gritou o balconista junto à meu ombro, e eu pulei de susto, porque não o vira aproximar-se. Os quatro homens junto ao ônibus se voltaram para ele. – Vou servir um pouco de pinga por conta da casa. Querem entrar?

Dois deles se apontaram com um sorriso, mas o motorista e o outro se limitaram a agradecer.

– Um pouco de café? – gritou o homem, e o medo em sua voz era tão tangível que não cabia a menor dúvida de que estava assustado. Os que entravam se entreolharam, intrigados. O motorista encolheu os ombros e ambos aquieceram, dirigindo-se à passos largos para o bar.

Os homens já estavam debaixo do umbral iluminado, quando eu e o balconista nos demos conta de que havia alguém dentro do ônibus. Era meu vizinho do banco, o que roncava como uma máquina estragada. Sentara-se e piscava atordoado, fitando a porta de luz, completamente confuso. O balconista fez um gesto de quem vai correr, mas então o relógio da igreja deu a horas.

Era um som cavo e profundo. Não parecia vir do céu, onde ondulavam os sinos mas da própria terra, como se dela emanasse as vibrações sonoras. Ecoava na distância, refletia-se no horizonte, um som diabólico que sacudia fisicamente o edifício. As janelas tremeram em seus esquadros, como se suportassem o açoite de um vento poderoso. Eu e o homem recuamos juntos e os ocupantes do ônibus que agora se encontravam todos dentro do bar (com excessão do meu vizinho, que seguia fitando-nos como um bêbado pela janela do ônibus) olhavam a escuridão de onde vinha semelhante tempestade tentando ver mais do que a noite revelava. O balconista gritava algo ao meu lado, mas o som, o terrível som do poderoso sino, devorava todo outro som que pudesse existir. Por doze vezes o badalo extraiu do campanário aquele punho sonoro e com ele golpeou, doze vezes, doze enfurecidas vezes, a face da terra.

Em meio aquela tormenta, vi, ou acreditei ver, algo que até hoje não pude explicar muito bem. Era como um vulto humano, desnudo e corcunda, que andava arrastando as mãos no solo, mas a tal velocidade que era difícil vê-lo de fato. Tinha uma cabeça deforme e grande, e movia-se nas sombras, evitando a luz, e se era real, felizmente não lhe vi a cara. Tive a impressão de vê-lo entrar no ônibus e andar rápido e decidido, em direção ao meu vizinho de banco, mas os vidros do carro vibravam desconsiderados e não se podia ver muita coisa. Fiquei com a impressão de ver o homem agitando as mãos, mas pode ser que meus olhos me pregassem uma peça.

Em algum momento, a última badalada calou-se, e o silêncio da noite abateu-se sobre nós – o enorme e profundo silêncio da noite. E por último, como viajantes vindos de muito longe, começaram a retornar o cantar dos grilos, o pio das corujas, aquele distante e intangível latido de um cachorro, e por fim, os soluços aturdidos do balconista que, de joelhos ao meu lado repetia sem cessar:

– Acenda a luz, pelo amor de Deus, acenda a luz de leitura....

Estivemos em Santa Inês durante todo o dia seguinte, e só pudemos partir perto das dez da noite, quando a polícia de São Francisco, município ao qual a pequena cidade estava vinculada, nos liberou, e o padre e algumas beatas terminaram de, gentilmente, limpar o interior do ônibus. Mesmo assim, durante o resto da viagem o carro inteiro fedia a sangue, um cheiro quente que vinha em golfadas e nos obrigava a abrir todas as janelas e meter a cabeça para fora.

Alguém ou algo, havia destroçado o homem que fora meu vizinho de banco. O fizera a dentadas, ou com poderosas garras, o que levou a polícia a afirmar que se tratava do ataque de uma suçuarana, como se a essas alturas da extinção das espécies, semelhante explicação tivesse alguma lógica. E como se tivesse alguma lógica que o animal houvesse entrado em um ônibus, matado a um homem e saído tão tranqüila como havia entrado, entre uma badalada e outra do campanário enlouquecido.

Mas a medida em que o motor punha distância entre nós e a paróquia de Santa Inês, e toda vez que o cheiro do sangue emergia das paredes, do chão e das poltronas, eu recordava a história que me contara o bêbado e os gemidos do balconista. Estremecia de pavor ao recordar o som do maldito sino de Santa Inês e durante meses dormi com a luz acesa. Uma pequena luz de leitura. Apenas o suficiente para afastar as sombras.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Ficção Científica: O Olho Virtual

Simone Saueressig

A última novidade que nos reuniu à todos na casa de Eduardo e Sandra, foi a instalação da Internet. Para a ocasião, convidados de alto estilo: Beto, nosso informático por exelência, Lucas e Bêre. Também estive, na condição de penetra. Sandra nutre uma sólida desconfiança contra mim, porque fui namorada de um antigo namorado seu.


Uma semana depois, telefonou -nos, muito aflita.

– O Beto está?

Não, não estava. Estava na firma, porque ela não ligava para lá?

– Eu liguei, mas me disseram que ele tinha saído urgente.

Expliquei que às vezes ele tem de sair para fazer algum concerto fora da loja. Sandra suspirou um pouco irritada. Deixei que pensasse um pouco e depois ofereci-me educadamente para passar-lhe o recado assim que chegasse. Ao invés de decidir-se, perguntou:

– Marta, você entende alguma coisa de Internet?

Não muito, comentei. Meu meio é a pintura, não a informática, mas convivendo com alguém como o Beto, a gente sempre termina aprendendo alguma coisa.

– Meu computador está fazendo uma coisa muito rara. Você quer vir e dar uma olhadinha?

Estive à ponto de dizer que não, mas a verdade é que seria uma ótima oportunidade para conversar e deixar bem clarinho que, dependendo de mim, Eduardo não corria nenhum perigo de deixá-la a ver navios. De modo que terminei concordando.

Muita gente telefona lá para casa, perguntando pelo Beto com mais ou menos o mesmo problema: o computador fazia algo raro. Imaginei que ela tivesse pegado algum vírus na rede, ou que, talvez, tivesse apagado algum programa. Lembro de uma vez em que acabei um bom pedaço de um programa, tentando apagar um arquivo inútil. Bem, a verdade é que eu não sou muito interessada por essa máquininha cheia de luzes e botões, onde as coisas não existem de verdade e para as quais minha constumeira distração constitui uma autêntica assombração.

Tive de esperar vários minutos, até que Sandra veio abrir a porta da casa. Estava um pouco pálida, com os olhos muito abertos, e imaginei que o computador devia estar fazendo algo verdadeiramente raro. Em geral, ela entende mais disso do que Eduardo.

– Estou cada vez mais intrigada – observou-me, sem nem mesmo trocar as costumeiras beijocas falsas.

– Apita e canta “A máscara negra”? – brinquei. Ela me fitou sem entender nada.

– Vem, vem.

O computador de Sandra está instalado em um quartinho onde têm de tudo. Desde um equipamento de som completo, até um teclado eletrônico enorme, cheio de botões que eu nunca saberei para que servem. Num canto, soterrada por livros, uma velha máquina de costura parece um monstro antiduluviano adormecido.

Puxei uma das cadeiras anatômicas que estavam por ali e sentei-me ao seu lado. O computador estava desligado.

– Vou fazer toda a operação, para que você entenda bem o que é.

Acendeu o aparelho. Zumbiu normalmente, a telinha piscou ainda mais normal e eu bocejei. Ela serviu-me um café de uma garrafa térmica que havia ao seu lado. Depois clicou sobre os íconos como sempre se faz e o programa piscou, abrindo o requadro do navegador.

– Até aqui, tudo bem – ela murmurou, como se estivesse ao comando de um avião do último tipo, cujos flaps, derrepente, deixavam de funcionar. A página de entrada se coloriu com dezenas de barquinhos imbecis que se moviam e me deixavam completamente zonza. Era a página da loja, claro.

– Bom, isso é o de sempre. Onde você costuma entrar?

Consultei o relógio e fiz alguns cálculos. Já devia ser às nove da noite na França.

– No Louvre.

Ditei-lhe o endereço (apostava como ela só tinha catálogos de lojas nos seus “favoritos”) e esperamos um pouco. Como de costume, o computador se tomou o seu tempo para aceder à tal da página, mas eu perdoava porque o Louvre sempre está engarrafado e eu compreendo bem porquê.

– É está? Pois já vê. Normal, normal. Isso funciona como manda o figurino.

– E qual é o problema?

– O problema é que outro dia estava procurando alguns endereços da Netcam.

Pisquei, assumindo meu ar de “sou uma ignorante, e daí?”. Ela suspirou, um pouco irritada.

– Entre outras coisas, as câmaras Netcam são essas que estão instaladas nos saguões de hotéis, nos bancos e lojas. Algumas estão colocadas em diferentes pontos das grandes cidades para que as centrais de tráfego possam ir verificando o fluxo de automóveis.

Fiz um “ah”, entendido e beberiquei o café. Estava muito forte e gelado e eu fiz uma careta.

– Estive visitando Londres e Paris, na última semana. Tinha saudade.

Claro. Saudade da lua-de-mel, não me diga mais nada! A cada minuto, minha resolução de por à limpo nossas impertinências juvenis desaparecia com maior velocidade.

– Então, encontrei isso...

Foi aos tais “favoritos” e chamou um endereço ilegível. Me pareceu estranho, porque geralmente as letras dos mesmos formam palavras reconhecíveis ou siglas conhecidas, mas dessa vez não era nada parecido.

A tela piscou e se pôs completamente negra. Bom, pensei, agora vai apagar e reiniciar o programa. Era um vírus. Ou uma brincadeira absurda, do tipo que só os internautas e os informáticos entendiam e achavam graça. Devíamos chamar o Beto imediatamente. Ou marcar hora. Enfim...

Já estava à ponto de dizer alguma bobagem, quando ela tocou-me a mão. Eu saltei. Estava gelada e trêmula. Inclinou-se ainda mais para o ordenar e sussurrou:

– Agora, já vem, já vem....

Então a telinha explodiu em milhares de cores que foram se condensando lentamente em formas extravagantes. Me inclinei sobre o monitor, tentando distinguir alguma coisa. Pouco à pouco, como se estivessem entrando em foco, fui identificando uma casa, um espécie de edifício, uma esquina e algo que, sem ter como chamar, diria que era um semáforo. Parecia um cruzamento.

– Aí está! – ela gritou no meu ouvido e eu saltei.

Que mente retorcida haveria concebido semelhante cenário virtual? As paredes das construções pareciam uma catarse de toda a ilógica arquitetônica, sublinhada pela presença aberrante de janelas deformes e negras como poço sem fundo. Diante do que eu acreditava ser a casa, um jardim bizarro exibia uma árvore tão medonhamente torcida e despedaçada, que me causou arrepios. Os galhos terminavam em destroços vivos, mais do que quebrados, estilhaçados, como se uma força sobrentural houvesse sido capaz de arrancar o que fora sua ponta. Pelo “céu” passava uma espécie de rio, um vendaval linear que carregava coisas que pareciam mover-se. Recordava o cenário agressivo de algum jogo cheio de monstros que destroçavam aos jogadores, antes mesmo deles serem capazes de adentrarem-se no labirinto mortal.

A diferença estava na maneira como se mesclavam as cores e as sombras. Não eram pequenas formas coloridas que compunham um todo, senão cores que se integravam perfeitamente com sombras e matizes, mesclando-se, criando padrões, proporciando uma tridimensionalidade que eu só vira até então em fotografias de boa qualidade.

– O que estará fazendo? – perguntou-se minha amiga.

– O que é isso? Que página é essa? – entusiasmei-me.

– Não sei.

Olhei para ela com um ar cansado.

– Olha, Sandra...

– NÃO TENHO A MÍNIMA IDÉIA! Entrei nesse lugar aí no dia em que estava vendo as netcam. Sempre é diferente. É como se a câmara se movesse.

– Vamos, Sandra, se sempre é diferente, como é que você sabe que está no endereço correto? – duvidei sem tirar os olhos do cenário. Agora a tela se movia. Deslisava ao longo de uma das coisas que parecia uma rua. Não, não delisava. Oscilava levemente de um lado para o outro, como se andasse. Era doentio. Me senti enjoada.

– Marta, você acha que dá para confundir esse... lugar... com algum outro?

Concordei, hipnotizada pelo movimento cadenciado da câmara.

– E dá para ver alguém? Para ver como estão vestidos e ter uma idéia...

Sandra negou com a cabeça.

– Tudo é sempre deserto. Às vezes passa... bom, uma coisa que parece ser um automóvel, mas nunca se vê nada além disso. Ah, e uma vez vi um... ônibus? Podia ser, não é? Mas não deu para ver se havia alguém dentro.

– O Eduardo já viu?

– Ele disse que eu devia sair já. Que devia apagar o endereço e chamar o Beto para ver se não tinha caçado nenhum vírus... mas é que hoje aconteceu uma coisa doida!

O movimento reíniciou-se. A câmara atravessou a rua e aproximou-se lentamente do prédio que parecia ser todo de vidro. Na parede lisa, um vulto desenhava-se fugazmente.

– Eu apaguei o endereço, como o Beto disse para fazer. Mas ele continua lá.

Olhei-a de soslaio.

– E tem mais: hoje recebi uma mensagem muito... muito curta.

Ela riu, estrangulada pelo medo. Clicou o mouse e apareceu o requadro normal da Internet. Depois foi ao “correio” e abriu a janela. Observei, fascinada, como o movimento da imagem que estava por baixo levava o vulto mais perto da parede de aparência decadente que o refletia de forma cada vez mais clara.

– Aqui está!

Desviei o olhar por um instante. Me bastou isso para abarcar a mensagem.

“Eu sei que você está aí”

Não havia nem endereço, nem assunto. Nada. Só as palavras negras sobre o fundo branco.

Arrebatei o mouse das mãos de Sandra e cliquei outra vez sobre a janela principal, que voltou a tomar o écran.

O vulto estava parado diante da parede refletora. Aproximou o que era a câmara e vimos, vimos, então, o que era.

Era um olho. Um enorme e demoníaco olho de pupila estrelada e íris amarela, que se fitava a si mesmo e nos mostrava a si, e nos fitava através da tela do computador, pavoroso, cheio de insânia e maldade! Repleto de luxúria brutal e ódio. E fome.

Bati no botão de arranque, justo no momento em que os alto falantes começaram a despejar algo horrível, algo que se parecia com as palavras humanas, mas irreproduzível, imemorável, tão antigo quanto o próprio Cosmos. Sandra gritou e empurrou a cadeira até tocar a parede atrás dela, e então começou a berrar cada vez mais alto. A tela piscou um instante e então se tingiu do cinza apagado e benfazejo dos computadores adormecidos.

Às vezes me pego olhando para o computador em nosso quarto de estudos, incapaz de mover-me. Já não o uso para nada. Voltei a usar o velho correio normal.

Tenho tentado analisar o que vimos e encontrar uma explicação racional. Quase sempre consigo. Mas quando desperto pela noite, com os olhos esgazeados buscando a escuridão do meu quarto, sei que o pesadelo está somente começando. As palavras seguem ecoando em minha memória e cada vez suporto menos a lembrança delas.

“Posso ver vocês.”

“Sei que estão aí!”

“Eu sei."