sábado, 15 de dezembro de 2012

Dark Fantasy: O substituto

Eu não gosto de repetir textos, mas é que a decoração natalina do shopping de Novo Hamburgo me remeteu diretamente ao conto... então, para quem não leu (ou quiser matar as saudades do senhor Biglon) aqui está ele.



Era sempre assim: todos os dias, antes de abrir as portas do shopping, Rosana sempre passava todos os detalhes das promoções em revista. E todos os dias, pouco depois de abrir as portas do shopping, sempre havia alguém que vinha com algum detalhe que escapara de sua vista atenta. Às vezes eram coisas mais sérias – como o dia em que um cartaz prometia um desconto de 100% em todas as iguarias da área de alimentação – e outras era um mero detalhe sem nenhuma importância. Quando o assunto era importante, Rosana saltava da sua cadeira com o celular já chamando algum número memorizado, enquanto ela caminhava apressadamente rumo ao problema, sorria profissionalmente para o reclamante e se impacientava com a demora do outro lado da linha.

Mas quando o assunto era um autentica bobagem, normalmente, tudo o que ela fazia era sorrir e prometer:

–Verei isso em seguida, senhor.

O “senhor” no caso presente, franziu de leve as sobrancelhas ruivas e espessas, piscou os imensos olhos azuis, deixou cair um pouco da luminosidade do sorriso amável.

–Imediatamente, eu espero. As crianças já estão circulando pelo saguão – observou ele, sério.

Rosana piscou, olhou para a agenda lotada aberta à direita, para as dezenas de notinhas espalhadas diante da tela do computador e para o telefone que começou a soar insistente. Esperava que o homem fosse bom entendedor e compreendesse que estava atolada de serviço mais importante do que trocar o letreiro junto à árvore de Natal onde se lia “Faltam 2 dias para a chegada do Papai Noel”. O correto, afirmava o homem diante de si, seriam “1 dia”.

–O mais rápido possível, – ela disse sorridente e estendeu a mão para o telefone.

O homem não era bom entendedor.

–Eu disse que as crianças, minha senhora, já estão circulando pelo saguão do shopping. Algumas delas já viram o letreiro errado. Há um menino que vem aqui todos os dias pela manhã para ver quantos dias faltam para a chegada do Bom Velhinho. Eu lhe asseguro que ele ficou estupefato ao verificar que hoje e ontem se embaralharam de uma maneira incrível em sua cabecinha mimosa. Está pensando se ontem viu mal ou se hoje ainda não nasceu o dia, ou se ele sonhou, ou o que foi que aconteceu.

Debruçou-se, o nariz aquilino e pontudo espetando o ar na direção de Rosana, a voz rouca muito séria, os olhos imensos com uma expressão quase assustadora.

–O garoto, minha senhora, acredita em Papai Noel.

O telefone parou de tocar. Rosana suspirou e relaxou um pouco na cadeira.

–O garoto é seu neto?

O homem endireitou-se e sorriu amistosamente outra vez. Alegremente. Como um glutão diante do bolo predileto.

–Oh, não! Infelizmente não! Eu não tenho netos. Infelizmente!

Ele parou de falar, olhou de novo para ela.

–E então, vai ver o cartaz agora?

Rosana suspirou de novo, levantou-se de um salto. O cliente sempre tem razão, disse-lhe a vozinha do pai lá no fundo da memória.

–Certo. O cartaz. Estou indo lá ver isso. Bom dia.

–Muito bem. Eu me alegro. Adoro ver o ar aflito das crianças diante daquele cartaz. Adoro ver como esticam o pescoço para ver se Papai Noel não está escondido nas sombras da casinha que vocês tão gentilmente construíram para ele se bem que, se me permite a crítica, o seu Bom Velhinho ia rolar de rir se visse o cenário.

O telefone tilintou de novo, Rosana sentou-se bem mais séria do que antes e atendeu-o de imediato.

–Alô? Quem? O Germano da “Personagens de Festa”? Ah, oi Germano. Sim, só um momento, estou concluindo a reclamação de um cliente. Aguarde na linha, sim?

Voltou-se para o ruivo magro de olhos e orelhas saltadas um bocado aborrecida. A decoração de Natal do ano era obra de sua irmã e a última coisa que ela ia querer, naquele momento, era que alguém fizesse uma leitura pós-moderna de uma árvore de Natal tradicional.

–O senhor tem alguma sugestão a fazer para melhorar nossa decoração natalina?

–Bem, não exatamente, – continuou o outro no mesmo tom de voz, como se o telefone, a linha e a pessoa do outro lado simplesmente não existissem. – Só que se Klaus Nicholas, o Papai Noel de verdade, você sabe, o Pelznickel, se ele aparecesse, não ia conseguir sequer entrar ali. Não ia caber. Um homem daquele tamanho, dois metros e três centímetros de altura, mais a mitra e o báculo, pesando quase cento e oitenta quilos, botas, manto e saco... o banquinho de plástico dourado que vocês chamam de “trono” não ia suportar isso tudo, você sabe...

Rosana pesou o que ele disse, depois agarrou o fone e, muito calma, disse:

–Nosso Papai Noel é um senhor de aproximadamente um metro de setenta, e não creio que passe dos oitenta quilos, sem a roupa com enchimento.

–Seu papai... ah, sim, Augusto Lima, sim, claro. Não se preocupe com ele. Sofreu um acidente ontem à noite e morreu há coisa de duas horas.

A moça empalideceu com violência. Aquilo já tinha passado dos limites.

–Alô, Germano? Olha, estou com um pequeno probleminha aqui, eu ligo mais tarde... em seguida, sim... urgente? O que?

Olhou para o telefone apertando os lábios com força.

–O quê?!

Ouviu em silêncio durante algum tempo. Depois, olhou para o homem que continuava impávido diante dela.

–Sim, estou aqui. Estou ouvindo, sim. Você mandou um substituto para o Papai Noel. Sei, Alto, ruivo, olhos grandes, nariz proeminente. Sim, sei quem é. Acho que está aqui na minha frente.

Pôs a mão sobre o fone e olhou para o homem diante de si.

–Como é seu nome, pois não?

–Pois não: Biglon.

–Sr. Biglon, ahn... posso ver a sua identificação e a carta de apresentação, por favor?

O homem puxou uma carteira grande de couro, de onde tirou uma carta amassada e uma velha carteira de identidade. Rosana observou os dois documentos, sorriu gélida e tornou a falar no telefone:

–Germano? Olha, não precisa se preocupar. Você não vai acreditar, mas o homem está aqui, na minha frente. É. Ta bom. A gente se fala outra hora.

Desligou com um cumprimento seco e fitou o ruivo diante de si, batendo o documento de leve no polegar. Não gostava dele. Não, não gostava nada. Mas, enfim, a carta de recomendação era autêntica e negócios eram negócios. Augusto Lima, o Papai Noel oficial do shopping, sofrera um acidente e morrera. O sr. Biglon era seu substituto, enviado pela mesma empresa que todos os anos chamava o sr. Lima. Rosana não tinha que gostar de Biglon. Biglon tinha de dar conta do recado e isso era tudo.

–Muito bem. Vamos experimentar a roupa...

–Oh, não, não se incomode. Eu tenho meu próprio figurino. Garanto-lhe que ficará satisfeita com o resultado. Por favor, não se incomode.

Sorriu. Uma luz dourada pareceu brotar de seu olhar doce, o ar perfumou-se com o cheiro de amoras silvestres. Encantador. Até Rosana sorriu de volta.

–Abrimos às dez. O senhor deverá estar aqui, no máximo, nove e meia.

–Assim será.

Acenou de leve, virou-se de costas e por um instante Rosana acreditou que seria possível. Então o homem, como se tivesse lembrado de algo no último instante, voltou-se outra vez e com a voz dura, o sorriso congelado, murmurou:

–Quero aquele cartaz trocado até daqui a cinco minutos.

Voltou-se de novo e saiu do escritório. Rosana ficou olhando a porta com um susto. De algum lugar viera um ar glacial que a gelara por inteiro. Ficou olhando o próprio hálito transformar-se em uma nuvenzinha de vapor um momento antes de estremecer.



A manhã seguinte amanheceu como se fosse uma ressaca. A cabeça lhe doía, as articulações pareciam desencaixadas e na boca pairava aquele inefável gosto de cabo de guarda-chuva. Enfim, parecia que o corpo pertencia a outra pessoa e talvez Rosana o tivesse cedido de bom grado. Na falta de outra opção, obrigou-se a levantar-se e tomar um banho frio. No meio da ducha, o telefone tocou. Era a mãe, reclamando da artrite e do pesadelo que tivera com as filhas. A moça a ouviu com a paciência curta e tratou de tornar a conversa igualmente curta mas ainda assim atrasou-se e quando chegou o shopping já estava de portas abertas, luzes acesas, clientes circulando e o jingle de Natal repetindo-se ad infinitum pelos corredores. Jorge, o secretário, recebeu-a no escritório da administração com um ar atento e preocupado e um bolo de papéizinhos na mão.

–Ah, que bom que você chegou! A bomba da água do ar condicionado quebrou de novo. Já chamei o Roger, e ele já está trabalhando, mas quer falar com você assim que puder. Parece que vamos ter mesmo de trocar a peça...

–Você chamou o Roger e ele já apareceu? Cruzes, hoje chove!

–Seu pai ligou e lembrou do jantar de amanhã a noite...

–Tá.

–A Lurdinha passou aqui e queria um vale, então eu emprestei cem reais para ela.

Rosana olhou o secretário com ar descrente.

–Cem reais? Tá louco, Jorge, quando é que você pensa que vai ver a cor do seu dinheiro de volta?

Ele deu de ombros, um pouco corado.

–Ela disse que era um presente para você...

–Nem que fosse para a Madre Tereza de Calcutá. Você sabe muito bem que ela vai terminar gastando tudo no bingo. O nosso Papai Noel já chegou?

Por um instante mínimo, brevíssimo, o suspiro de um anjo, Rosana alimentou a esperança de que o tal sr. Biglon não aparecera, que ela ia poder chamar outro sujeito. Mas Jorge sorriu animado:

–Oh, sim! Sentou-se pontualmente às 10:00 na cadeira do Papai Noel e está “atendendo” desde então. Já faz uma hora e ele nem pediu para ir ao banheiro.

Rosana respirou angustiada. Augusto Lima sofria de incontinência urinária. Saia do seu posto de quinze em quinze minutos no máximo, e corria para o banheiro dos cavalheiros. Às vezes os meninos o seguiam só para conferir que Papai Noel usava o mictório como todo mundo.

–E as crianças? Estão gostando ou temos muito choramingo?

–Elas o adoram! – riu Jorge como se fosse um dos pequenos clientes do velho. – Puxam a barba, riem, cochicham coisas em seu ouvido. Quando ele sentou-se havia apenas dois para fazerem seus pedido. Vinte minutos depois, havia uma fila até a metade do café.

Bem, tudo parecia sob controle. Nada com que se preocupar, além das preocupações corriqueiras. Ela abriu a agenda e consultou os compromissos.

–Claro que... o sr. Biglon fez algumas exigências, – titubeou Jorge.

Rosana levantou os olhos bem devagar.

–Quais?

–Pediu uma garrafa de água.

Ela balançou a cabeça.

–É justo. O que mais?

–Bom... ele... pediu que desligássemos o alto-falante da casinha do Papai Noel. Disse o que o jingle era de muito mau gosto.

Rosana empurrou-se contra o assento da poltrona.

–E...?

–Bom, Rosana, ele fez o pedido de um jeito tão... tão...

–Contundente?

–É... talvez. Em todo o caso, argumentou tão bem, que eu terminei concordando.

–Então a casinha do Papai Noel está sem o jingle que foi escrito para tocar na casinha do Papai Noel e que nos custou os olhos da cara.

–É...

Ela mordeu o lábio, pensativa.

–Certo, vejo isso em seguida.

–Tem mais uma coisa.

Rosana cruzou as mãos sobre a mesa e esperou. Jorge olhou ao redor, confuso.

–Ele não gosta da decoração, você sabe. Disse que não combina com o seu figurino. “Meu traje”, foi o que ele disse. Então ele... ele... eu não sei bem como explicar, mas ele mudou a decoração da casinha.

Rosana concordou com a cabeça, bem de leve. Uma ponta de dor de cabeça latejava discretamente sobre a têmpora.

–Muito bem. Vamos ver isso imediatamente.

A fila de crianças realmente chegava até a metade do café. Alguns dos pequenos esticavam o pescoço na tentativa de ver o que acontecia lá na frente, e por quê a fila não andava mais depressa, mas nenhum deles fazia qualquer tipo de escândalo. O que era muito bom, sem dúvida alguma. Rosana aproximou-se da árvore de Natal, deu a volta no cercadinho cheio de duendes de fibra e isopor e já de longe percebeu a casinha do Papai Noel. De fato, havia alguma coisa diferente. Alguma coisa que ela não sabia dizer o que era. Era a decoração que a irmã fizera, sem dúvida. Nenhuma panela, copo ou coisa alguma havia sido modificado. Mas ao mesmo tempo tudo estava fora do lugar. Ela olhou para o cenário e piscou.

A luz! O sr. Biglon havia mexido na luz! Devia ter apagado umas quantas lâmpadas, porque a casinha, antes alegre, iluminada e quase tão ensolarada quando a praça lá fora, que ardia sob um sol de quase trinta e cinco graus, agora estava cheia de sombras inesperadas, invernais. O candeeiro sobre a mesa parecia exalar a luz de um candeeiro de verdade, o cheiro da querosene impregnando o ambiente. O tinteiro destelhava lampejos de chama e cristal, como se dentro dele houvesse tinta de verdade. A boca do fogão, mais atrás, tremulava em laranja e dourado, como se ali dentro alguém de fato tivesse acendido o fogo. A parca iluminação, entretanto, acentuava esplendidamente os tons de cobre das panelas penduradas sobre o chapa do fogão e a chaleira, também de cobre, fumegava de verdade. As teias de aranha pareciam reais, velhas e empoeiradas, e a própria poeira sobre o console da cristaleira do fundo do cenário, esbranquiçada e cintilante, tinha um ar de coisa verdadeira. A criança no colo de Biglon olhava para ele extasida.

Quando Rosana bateu os olhos no traje do homem, o sangue ferveu. Não, aquilo não era roupa de Papai Noel, nem aqui, nem na China! De baixo para cima: chinelos de lã xadrez velhos e felpudos; meias de listras brancas e vermelhas; calça de um tecido de lã marrom, até a metade da canela, segura por um suspensório de couro ricamente trabalhado; camisa de flanela branca, alva de um jeito como ela jamais vira, com botões de madrepérola e dourado; um cachecol vermelho descansando sobre os ombros; o cavanhaque e o bigode ruivo, caprichosamente penteados e terminados em um bico, os cabelos (ruivos) escovados para trás e isso era tudo. Nada de roupa vermelha, barba branca e longa, touca, saco de brinquedos, botas, barriga, nada disso. Era apenas o velho Sr. Biglon, vestido com o que provavelmente o sr. Biglon usava em sua casa durante o inverno, sentado em uma cadeira de madeira (que, Rosana tinha certeza, ele mesmo havia trazido de casa) com uma menina no colo, ambos conversando animadamente, como velhos amigos. Junto ao cordão vermelho que separava a casinha do restante, uma mulher com os olhos úmidos e um sorriso imenso, não cansava de fotografar a cena. Rosana viu que havia algo muito correto e algo muito errado naquilo tudo, e não era a roupa ou a iluminação da casinha. Era algo muito, muito diferente.

–Com licença, senhora, – ela interrompeu o mais amavelmente que pode. – É sua filha?

A mulher piscou, secou uma lágrima.

–Sou sim. A senhora é do shopping? Ah, a senhora não imagina o que significa isso! Não sabe, não imagina! Não tem nem idéia!

Rosana trocou um olhar com Jorge.

–Estamos fazendo uma pequena pesquisa... gostaríamos de saber o que a senhora achou do nosso Papai Noel... mas parece que a senhora gostou...

–Se eu gostei? Se eu gostei? Meu Deus! Não tenho palavras... não, não posso! Sinto muito!

Soluçou, as lágrimas correndo pela face. Rosana olhou ao redor, nervosa. As outras mães, na fila, olhavam para a mulher com apreensão.

–Eu não entendo... só queríamos saber o que achou do sr. Biglon...

A mulher atirou-se nos braços de Rosana, soluçando. A gerente do shopping sorriu amarelo para as demais. Uma loura abraçou protetoramente o filho e afastou-se. No mesmo instante, o menino começou a berrar como se alguém estivesse arrancando seu couro cabeludo.

–O seu Papai Noel é tudo... tudo de bom! É um pouco incomum, sabe, sem a barba branca e tudo o mais – murmurou a mulher quando finalmente conseguiu falar. – A casinha é meio sombria, parece tão suja... mas minha filha... minha filhinha... ela está conversando com ele, tão animada! Tão animada!

O homem tinha jeito com crianças, pensou Rosana cada vez mais de mau humor. Ele realmente tinha jeito com crianças.

–Ela disse... ela chegou aqui e quando ouviu a musiquinha, disse... “mamãe, esta é a música que a neve faz quando cai?”. Já pensou? Esta é a música que a neve faz quando cai! Meu Deus, que lindo! E foi correndo falar com o Papai Noel.

–A senhora gostaria de ver um médico? Está tão nervosa... – argumentou Jorge, gentilmente. A mulher olhou para ele como se visse uma assombração.

–Vocês não entendem... como poderiam entender? Fazem oito meses que Anette não diz uma palavra! Oito meses, desde que o pai dela foi enterrado!

Sorriu, encantada.

–E agora, olhem só, olhem para ela! Que tagarela que ela é! Que tagarela!

Rosana afastou-se da mulher devagar. Havia uma música no ar, de fato, mas a dor de cabeça começava a transformar-se em uma enxaqueca das graves e ela não conseguia prestar a atenção em mais nada. Viu quando a menina beijou a bochecha de Biglon e saltou de seu colo com um sorriso iluminado, correndo para a mãe com alegria. A mulher a pegou nos braços e encheu de beijos.

–E então, Neti, o que foi que você pediu? – soluçou. A menina, muito séria e preocupada, passou a mãozinha sobre o rosto dela.

–Você está chorando, mamãe! – protestou.

–Não é nada, meu bem. O que você pediu?

A garotinha fez cara de mistério.

–Ah, não posso contar. Senão, o Papai Noel disse que não acontece.

–Mas como a mamãe vai poder comprar o presente para dar para o Papai Noel dar para você? – protestou a mulher carinhosamente.

–Ah, isso? Isso eu posso dizer: eu pedi para o Papai Noel uma boneca fada.

–Ah, meu anjo! Isso mesmo, isso mesmo! Vamos, lá, correndo, comprar!

As duas afastaram-se alegremente, cheias de espírito natalino. Rosana olhou para a casinha e o sr. Biglon acenou alegremente para ela. Então um menino entrou no campo de visão da moça, subiu no colo do homem e puxou-a a barba com força. Ele gemeu e olhou para o menino com uma expressão carrancuda. Os dedos do homem, dedos longos, fortes, nodosos, de unhas muito longas, bateram na mesa com impaciência e desagrado. O menino encolheu-se e murmurou desculpas.

Era o bastante. Rosana virou-se, tateou o braço de Jorge e murmurou:

–Me leva para o escritório e chama o Dr. Rubens que eu vou precisar.



Três dias depois, a segunda-feira raiou promissora. Dezembro inaugurou-se com uma manhã quente e céu de brigadeiro. Rosana conseguiu levantar-se no horário, fazer tudo com calma e sentar-se em sua cadeira antes das nove da manhã. Pediu um café preto e forte a Jorge, consultou a agenda quase com um sorriso nos lábios: de todos os problemas pendentes, os únicos que ainda não estavam bem solucionados era uma discussão em torno da publicidade ousada de uma loja de roupas íntimas e um vaso entupido no closet destinado aos deficientes físicos. De resto, até a bomba d’água do ar condicionado tinha sido substituída e agora funcionava perfeitamente. Era bom demais para ser verdade, por isso ela quase não se espantou quando Jorge bateu na porta discretamente e espiou com um ar que prenunciava chuvas e trovoadas.

–Rosana... hum... tem um sujeito aqui querendo falar com você... ele é... hum...

Virou-se, conversou com alguém.

–Desembucha logo, Jorge, – exigiu a empresária batendo com o canto do lápis que utilizava para anotar detalhes do balanço parcial do mês anterior.

–Bom, o detetive Gilberto da polícia civil quer falar com a senhora.

Detetive? Uma bola fria formou-se na boca do estômago da moça. Era óbvio que em pouco menos de meia hora, a bola fria teria se transformado em uma pequena fornalha.

–Pois diga ao policial que entre, Jorge, e aproveita para me trazer o sal de frutas.

Baixou os olhos um momento, guardando os papéis em uma pasta, perguntando-se que tipo de bobagem Lurdinha havia aprontado agora, ou se o problema teria origem naquele cafajeste do seu ex-marido, e seu eterno pedido de revisão na pensão do filho de ambos e aquele papo insuportável de “você dá mais atenção a esse templo do consumo do que à nós!”, que tinha terminado no divórcio há menos de um ano. Era muito cansativo, mas Jonas não se acostumava ao fato de que já não tinham nada que ver um com a vida do outro. Alguém pigarreou e Rosana levantou os olhos.

Se esperava um homenzinho baixo, de cabelos desgrenhados e sobretudo velho e sujo, feito um certo detetive que entretinha as noites de sexta-feira na casa de sua infância, decepcionou-se. O homem diante dela era alto, jovem, cheirando à sabonete e desodorante caros. Tinha enormes olhos negros incrustados em um rosto de ébano, franco e bem humorado.

–Bom dia – disse ele estendendo a mão grande e elegante, que ela apertou com firmeza. – Eu sou o detetive Gilberto e este aqui é o meu assistente, Lucas.

–Oi, – fez um sujeito emergindo de trás do homem e acenando de leve. Parecia alguns anos mais velho do que o superior, mas o certo é que sua careca e os óculos feios contribuíam e muito para essa impressão.

–Puxa, –comentou ela, tentando ser gentil – que prazer ver um policial tão jovem! Sentem-se, por favor. Em que posso ajudá-los?

Jorge entrou trazendo uma bandeja de alumínio onde descansavam três xícaras de cafezinho, o açucareiro, o adoçante, meio copo de água e o envelope de sal de frutas. Rosana não fez cerimônia e serviu-se do último, enquanto os outros dois agradeciam o café.

–Senhora, estamos investigando o desaparecimento de um menino chamado Gino Martinho.

Rosana pensou um pouco e balançou a cabeça.

–Não o conheço.

–Nem eu esperava que a senhora o conhecesse, – declinou Gilberto com delicadeza. – Gino tem sete anos e desapareceu de seu quarto na noite de sábado. Estamos verificando seus últimos contatos, e consta que o menino e seu pai estiveram no shopping no sábado. De acordo com o homem, ambos vieram ao cinema, lancharam na área de alimentação e visitaram várias vitrines para escolher o presente que o Papai Noel traria. Depois foram para casa, e o senhor Martinho, que é separado, colocou o menino na cama. Pela manhã, a criança havia desaparecido. Queremos sua permissão para visitar as lojas onde eles estiveram, conversar com os atendentes, com o pessoal do cinema, das lancherias, essas coisas.

Presente. Papai Noel. Uma campainha buzinou uma advertência na cabeça de Rosana e ela estremeceu. Lucas, o assistente do detetive, achou que era por causa do sal de frutas e do ar condicionado. A mania das pessoas por ar condicionado era uma coisa que ele não entendia direito. Era insuportável. Muito frio. Ou muito quente. Mas, normalmente, muito frio. Horrível!

–Perfeitamente. O senhor tem carta branca da gerência do shopping para interrogar quem quiser. Vai querer uma sala específica para isso?

O detetive sorriu outra vez, um pouco contrariado. Que mania que as pessoas tinham de somar “perguntas” e “polícia” e obter “interrogatório” e “ditadura”.

–Senhora, nós não vamos interrogar ninguém. Só queremos conversar com algumas pessoas em seu próprio local de trabalho. Pode, por favor avisar que estaremos passando?

–Sim, claro! É só dar uma lista das lojas que pretendem visitar para o meu assistente, que ele já vai ligar para os gerentes dos respectivos estabelecimentos e avisar da sua... aham... bem, como vamos dizer? Visita?

Gilberto aquiesceu.

–Visita, está correto.

Rosana ficou olhando para ele com um sorriso gelado, enquanto chamava Jorge. Passou as ordens para o rapaz e arrematou, suavemente, enquanto os dois policiais seguiam o rapaz:

–Suponho que podemos contar com a sua discrição. Não é muito agradável para os clientes do shopping imaginar que a polícia anda por aí fazendo perguntas a respeito da vida delas, nem que seja por causa de sua própria segurança. O senhor entenderá: muita gente acha isso uma intromissão em sua intimidade.

O detetive parou junto da porta, voltando-se para ela e dirigindo-lhe outro sorriso iluminado. O pequeno grupo se deteve.

–Seremos discretos, pode deixar. Para dizer a verdade, eu esperava uma resistência bem maior por parte da gerência.

Presentes. Natal. Papai Noel. Rosana achou que aquela dor de cabeça estava querendo aparecer de novo. A azia já se instalara.

–O que é isso, delegado! – ela sorriu outra vez. – Eu não gostaria de ver o nome do shopping envolvido em uma investigação, por isso, seria bom se o senhor descartasse o quanto antes a idéia de que o seqüestrador do menino tenha circulado por nossos corredores. A idéia de que seja alguém que trabalha aqui, então, é simplesmente impensável!

–Detetive, – corrigiu Gilberto balançando a cabeça. – E essa é a atitude mais inteligente que já vi neste caso, desde que começamos a trabalhar nele, ontem à noite. Até logo.

–Até sempre, detetive. Se pudermos ajudar em mais alguma coisa não hesite em me procurar – ofereceu ela, desejando que a rasgação de seda terminasse de uma vez.

–Na verdade, – comentou o ajudante do policial – tem uma coisa que a senhora poderia fazer, na minha opinião.

Todo mundo olhou para o homenzinho que parecia imensamente satisfeito por poder intrometer a sua colher na conversa. Rosana, particularmente, já nem lembrava o nome do sujeito.

–E o que seria?

–Ah, minha senhora, a temperatura do saguão! Pelo amor de Deus, estamos quase no verão, mas assim já é demais! – reclamou o homem aborrecido. – Faz um frio tamanho no saguão, um frio tamanho, que se continuar assim termina nevando de verdade sobre a árvore de Natal.

–Lucas! – ralhou o detetive entredentes.

–Eu só estava tentando ajudar... – balbuciou o outro, enrubescendo até a careca.

Um estremecimento mínimo percorreu Rosana e ela balançou a cabeça.

–Pode deixar, senhor, pode deixar. Em seguida eu vou dar uma volta no shopping e verificar se está tudo funcionando direitinho. Verificarei pessoalmente a temperatura do ar condicionado.

Quando a porta se fechou ela esperou alguns minutos e então ligou para o assistente.

–Estou descendo para ver se está tudo certo, Jorge. Quando você terminar de falar com as lojas, encontre-me junto da árvore de Natal.

Levantou-se, consultou o relógio: passava um pouco das nove e meia.

Já ia saindo, quando algo a fez voltar, abrir o pequeno armário à direita da sua mesa e tirar de lá um casaco pesado, que usava só no inverno, e que sempre ficava no escritório para o caso de alguma emergência.

Suspeitava fortemente que aquela era uma delas.



Na decida da escada de serviço, Rosana cruzou com Alonso, o da livraria. O homem usava um bigode enorme, grisalho, tinhas sobrancelhas largas e grandes. Era alto, magro, e as bochechas chupadas, como se sempre estivesse de mau humor, mas era só aparência. Mal viu Rosana, abriu um sorriso bem humorado. Estava sempre atrasado com as taxas de manutenção e limpeza do shopping mas nunca economizava na alegria.

–E então? Teremos um Natal branco, como se fôssemos Londres ou Paris?

Rosana parou no meio do caminho, pensando que o tema da decoração tinha sido estipulado em vermelho e verde, para aquele ano. Nada de branco e prata. Já tinham tido branco e prata há dois anos, será que ele não lembrava?

–O senhor não esteve na reunião sobre a decoração natalina? – perguntou. O sorriso do outro transformou-se em uma careta surpresa.

–Decoração natalina? O que a decoração natalina tem a ver com isso?

–Não está falando da decoração natalina?

–Não. Estou falando da temperatura do saguão – retrucou ele. O sorriso voltou, um pouco forçado. – Eu sei que faz calor, mas isto já é um exagero. Vai afastar os clientes.

Riu, alegre de novo.

–Ou ajudar nas vendas do estoque de inverno da malharia do segundo andar! Eles devem ter ficado com um monte de produtos encalhados neste inverno. Não tivemos inverno de verdade, a senhora sabe, efeito estufa e essas coisas. Meu sobrinho é ambientalista, dá aulas sobre isso. É esse o seu marketing? Se for, me avise. Vou trazer a máquina de café de volta para a livraria e substituir a de sucos!

O ar condicionado. Sim. Rosana estremeceu.

–Vou verificar isso – resmungou – antes de descer.

Deu meia volta e apressou-se a subir.

O último andar do edifício era um espaço amplo, quente e abafado, onde a luz do sol infiltrava-se muito clara pelas aberturas da cumeeira do telhado de amianto. O espaço era usado como estacionamento e o ar condicionado ficava no canto mais afastado e sombrio. Era um trambolho velho e ultrapassado, legado que a gerência anterior tivera a impertinência de definir como “pequeno probleminha térmico”. No inverno, não dava conta de aquecer, no verão, não dava conta de resfriar. Vivia dando problemas e a liquidez da atual contabilidade ainda não lhe permitia investir em um aparelho novo. Mas Rosana vinha fazendo grandes progressos na área do empréstimo bancário. Esperava que logo, logo, o gerente da agência do próprio shopping percebesse que trocar o monstro quimérico atrás da grade amarela e da placa “Não passe. Perigo de morte” era imprescindível para o futuro do estabelecimento.

O aparelho enorme, empoeirado e velho, roncava a todo volume, ecoando pelo estacionamento vazio. Quando encontrava-se à poucos passos de lá a coisa emitiu um apito e o que quer que roncasse dentro dela parou de repente de fazer barulho. O aparelho sacudiu-se como um monstruoso cachorro molhado e silenciou. Rosana revirou os olhos e puxou o celular da cintura, mas não chegou a abri-lo. Ouviu alguém praguejando em voz alta. A porta da grande de segurança estava aberta – o que contrariava as normas – e ela entrou no estreito corredor que circundava a máquina, intrigada. Encontrou Adams, o zelador das garagens, empunhando uma chave inglesa e pronto para desferir um golpe na velharia recalcitrante.

–Não se atreva a fazer isso, se não quiser que o conserto dessa coisa saia do seu pagamento! – explodiu Rosana saltando para agarrar a ferramenta.

O homem virou-se assustado e tossiu descontroladamente.

–Dona Rosana! – fez ele, quando conseguiu recuperar o fôlego.

–Eu mesma. Posso saber o que pensa que está fazendo? – gritou ela com as mãos na cintura.

–Estava tentando consertar...

–Batendo nesse troço com uma chave inglesa? Por acaso ninguém lhe ensinou como usa-la? E por falar nisso, que história é essa de estar aqui dentro, mexendo no ar condicionado? Entende do assunto, por acaso?

–Eu queria arrumar... o técnico esteve aqui não faz nem uma semana! – ele gaguejou humildemente. – Foi ele que me disse que se eu precisasse abrir o registro da saída de água, talvez tivesse de dar umas batidinhas com a chave...

–O senhor tem um minuto para sair daqui. Um minuto! E me deixe a chave da grade.

–Dona Rosana, não fique zangada, eu lhe peço. Olha, não vá me deixar na mão, hein? Eu não tive culpa! Nem mesmo encostei nessa coisa! Quando cheguei ele já estava regulado para esquentar! Foi o termostato! Deve estar quebrado! Eu não fiz nada! Nada!

A moça ficou em silêncio, mas estendeu a mão para ele. A súplica do outro caiu para um resmungo tristonho quando separou a chave que ela pedira do molho e depositou-a na mão delicada mas firme.

–Se o técnico verificar qualquer avaria ocasionada por alguma violência, vamos conversar muito seriamente, entendeu? – ela comentou quando ele passou por ela arrastando os pés. O rosto do homem iluminou-se.

–Obrigado, dona Rosana! A senhora é uma santa!

Rosana fitou-o em dúvida e ficou olhando ele sair do recinto gradeado e fechar a porta. Os passos se perderam rapidamente na direção do controle do estacionamento e depois tudo ficou muito, muito quieto. Era um silêncio morto e quente, como se alguém a tivesse empurrado para dentro de um forno aceso e fechado a porta.

Pouco dada à impressões, a moça voltou sua atenção ao maquinário estragado. Havia vários relógios de pressão que não significavam nada para ela. Era como um cacho de olhos brancos e mortos de alguma criatura sombria e pesada, que se acoitava no calor sombrio da garagem superior. Bateu sobre um deles, cujo ponteiro, murcho apontava para o zero e em outro, imóvel, que assinalava “80”. Gostaria de saber “80” o quê, pensou ela voltando sua atenção para o termostato, o único que ela reconhecia e do qual conseguia extrair alguma informação. Mesmo que fosse aquela sandice.

O marcador indicava menos cinco.

Franziu o cenho, bateu sobre o mostrador, que não se moveu.

Cinco graus negativos?

Não era de admirar que a máquina pifara. Se o termostado marcava uma temperatura dessas, o mecanismo ajustava-se automaticamente para aquecer. E com o calor que fazia ali em cima, o mínimo que se podia esperar, é que alguma coisa queimasse ou derretesse dentro do aparelho.

Devia estar muito quente, lá em baixo. Ou, pelo menos, todo mundo deveria de estar reclamando de calor, não de frio. O melhor a fazer era chamar Roger e pedir que ele viesse o mais depressa possível.

–Droga! – resmungou ela, puxando o celular.

Não havia sinal.

Verificou a bateria – completa – , sacudiu o aparelho, e nada.

Súbito, alguma coisa dentro do ar condicionado estalou como um tiro e um jato de vapor escaldante jorrou bem à frente dela com um apito inesperado, seguido de um chiado alto. Rosana deu um salto, o coração querendo lhe sair pela boca. O celular voou de suas mãos e foi parar embaixo do monstrengo de lata e filtros velhos.

Irritada, chutou a coisa de metal. Oh, sim, o dia prometia ser infernal!



Toda aquela confusão com o ar condicionado havia lhe custado bem mais tempo do que esperava. Quando a gerente chegou ao térreo do shopping e verificou o relógio, faltavam seis minutos para as portas do estabelecimento abrir. Seis minutos não era nada. Rosana passou pela chefe dos seguranças e avisou que deviam retardar a abertura das portas até uma segunda ordem. A mulher a fitou curiosa e Rosana nem sequer se deu ao trabalho de explicar alguma coisa. Caminhou apressada para a área do saguão sentindo, à cada passo, como a temperatura baixava de maneira espantosa e, sem diminuir o passo, vestiu o casaco por cima da roupa suja pela poeira do estacionamento. Continuou andando, zangada demais para sentir frio, apressada demais para prestar atenção nos atendentes dentro das lojas, que espiavam de olhos arregalados, e distraída demais com a dúvida de se Jorge a estava ou não diante da árvore de Natal, como haviam combinado. Esperava que ele estivesse com o telefone celular à mão, para chamar Roger imediatamente. Depois teria de dizer-lhe que pedisse à Adams que recuperasse seu próprio celular de debaixo do ar condicionado, se é que o delicado aparelho que a mãe lhe dera há duas semanas ainda estava em condições de funcionamento. “Canta, dança e sapateia”, dissera-lhe a mulher. Ninguém falara nada de impactos e nem de altas temperaturas.

Quando chegou no saguão, parou de repente, confusa.

Por alguns instantes intensos pensou que havia errado de porta e, de alguma maneira que não entendia, atravessado um umbral estranho e maravilhoso que a transportara a algum outro lugar. A pele do rosto contraiu-se debaixo da maquiagem de verão, sob o impacto do frio. Ela sacudiu-se abominavelmente, envolta pela temperatura mais baixa que já sentira. Apertou o casaco em torno de si, esquecendo qualquer resquício de elegância que ainda tivesse sobrevivido e escondeu as mãos sob as axilas, como fazia quando era pequena e morava com o pai e tinha de ir à escola sem agasalho ou luvas. Diante de sua boca entreaberta de espanto, formou-se uma pequena nuvem branca de vapor.

Mas isso era apenas uma parte de tudo.

Percebeu que dentro das lojas, os atendentes encolhidos e próximos uns aos outros, fitavam-na assustados. Havia muita gente refugiada nos restaurantes da área de alimentação, próximos aos balcões de buffet. Rosana supôs que estivessem com as bocas de gás acesas. Na pizzaria de forno à lenha – que nessa época costumava ficar às moscas – uma pequena multidão se aglomerava – entre eles, Jorge, que acenou-lhe aflito. Mas nem um grito se ouviu, nenhum som. O silêncio ali em baixo era ainda maior do que o do estacionamento, embora tão delicado que parecia que qualquer coisa poderia rompê-lo: o suspiro de uma abelha, o vôo de uma libélula, o cintilar de uma estrela. Olhou para a árvore de Natal. Alguma coisa estava diferente – muito diferente. As luzes pareciam mais vivas, embora menos intensas, tremulando como chamas de velas, quentes, macias, acolhedoras. Ela sabia, de alguma maneira que nem pensava em como explicar, que os enfeites – brinquedos vermelhos – agora eram outros. No lugar dos cavalinhos, trombetas, bonecas, todos de plástico, havia agora cavalinhos de madeira, trombetas de metal dourado que emitiriam uma nota aguda, se sopradas, e bonecas de pano de verdade. E as estrelas, as estrelas de cartolina, lantejoulas e lampadazinhas agora brilhavam como se...

... como se as próprias estrelas do céu estivessem presente!

Outro arrepio violento a sacudiu como um vendaval, e Rosana deu um passo para dentro do saguão, como o intuito de dar a volta na árvore e refugiar-se com os demais na pizzaria, enquanto pensava em quem chamar – os bombeiros, talvez? –, mas então deteve-se outra vez, esticando o pescoço para frente, tentando ver o que acontecia ao pé da árvore. Ali havia um azáfama estranho, que não percebera nos dias anteriores. O movimento lento e repetitivo dos duendes mecânicos tinha sido substituído pelo ir e vir intenso e inconstante de uma série de pequenas sombras. Rosana fixou os olhos, saltitando continuamente na tentativa inútil de aquecer-se, mas ainda assim, não conseguia compreender o que era aquilo. A mirada desviou-se lentamente, incrédula, para a chaminé da casinha do Papai Noel, uma casinha maior do que a que tinha sido construída originalmente, como se o cenário tivesse inflado durante a noite. E da chaminé provocante emergia uma fumaça azul acinzentada que espalhava pelo saguão o cheiro bom de madeira crepitando alegre, pão recém tirado do forno e café com leite bem quente. Rosana seguiu a fumaça em sua ascensão com olhos famintos de calor, seguiu-a até a ponta da árvore que parecia viva, parecia crescer e respirar como ela nunca percebera que as árvores faziam, uma árvore com vontade própria.

E justamente ali, entre a balaustrada do segundo e do terceiro andar, a fumaça se perdia em uma nuvem densa, escura, cor de chumbo, uma nuvem que cresceu, condensou-se, iluminou-se com um relâmpago e começou tranqüilamente à nevar, como se isso fosse possível, como se isso não fosse um verbo impessoal. A neve flutuou como mágica ao redor dos galhos verde-escuros, o verde mais escuro e sombrio que Rosana já vira, mesmo em sonhos, um verde em cuja sombra ocultava-se tudo o que assombra a infância e onde brilhava distante e tímido, tudo o que a ilumina: o monstro do armário, o anjo da guarda, o bicho-papão, a fada madrinha, a mão que bate, o abraço carinhoso. A neve caiu na árvore, enquanto as sombras ao pé dela acoitavam-se em seus galhos mais baixos, condensou-se nos ramos e então diminuiu até quase parar. Em seguida a árvore sacudiu-se para livrar-se do excesso, e depois disso as sombras saíram do pé dela, deram-se as mãos em uma roda e puseram-se a pular e correr, enquanto entoavam o canto de Natal mais belo e mais irritante que alguém já ouvira.

Mesmo em sonhos.



Aquilo era, francamente, demais! Rosana avançou para a casinha do Papai Noel a passos duros, deixando momentaneamente de importar-se com o frio, com os olhares dos funcionários das lojas, com as incômodas alterações da árvore de Natal. Ignorou até mesmo as sombras que cantavam e dançavam sob os galhos mais baixos, embora isso fosse um esforço extra. Seus olhos desviaram-se para elas apenas por um momento e o que viu foi o bastante: olhos arregalados, orelhas pontudas, narizes avermelhados. Talvez alguns chapéus de feltro, mas não tinha certeza. O que a fez desistir dos vultos foi a pele verde acinzentada. Parou diante da frente do cenário e praguejou em voz baixa.

Alguém pusera uma parede ali, e na parede havia uma porta e uma janela igual às janelas que adornavam as outras paredes. Porém, inacreditavelmente, era possível ver através da nova parede. Estava ali, era sólida, parecia perfeitamente sólida, mas ali estava a mesa, a cadeira, o abajur, o fogão (com o fogo tremulando em seu interior), as panelas de cobre, as outras janelas e o homem ruivo das calças curtas e chinelos de lã.

Tudo tem um limite, Rosana pensou. Aproximou-se da porta (de muito longe ouviu uma voz gritar seu nome, como se a chamasse através da estepe árida e gelada que enxergou ao espiar sobre o ombro. Talvez o grito viesse do bosque à esquerda, mas resolveu não dar atenção a nada mais a não ser a porta diante de si, não agora, não mais. O bosque e a estepe haviam soprado o shopping para longe e ela perguntou-se, finalmente, o que é que as crianças viam quando iam até a casa do Papai Noel substituto) e então ergueu a mão e bateu com força e determinação.

–Entre, está aberta, – disse o sr. Biglon.

Ela puxou um pedaço da manga do casaco para baixo, meteu a mão protegida por ela na maçaneta (nem por um momento duvidou que deixaria a pele em sua superfície gelada, caso não se precavesse) e entrou.

O calor da casinha a acolheu com um prazer quase brutal. A moça cambaleou na soleira da porta, enregelada, percebendo afinal o quanto estivera próxima a um fim branco. O Sr. Biglon a encarou com os olhos muito azuis e aborreceu-se:

–Pelo amor de Deus, feche essa porta. Está gelado lá fora!

Rosana obedeceu, com uma certa gratidão. De súbito sentiu como a sombra empoeirada da casa a acolhia com seu calor e silêncio, como se ao fechar a porta o tivesse feito sobre uma terrível algazarra de luz e frio. Respirou fundo apoiando a testa na porta de carvalho antigo, sentindo o cheiro de pinheiros e resina desconhecida. Depois endireitou as costas. Aprumou como pode o casaco e a saia, mas não tirou os sapatos encharcados da neve do curto caminho entre o portãozinho do jardim da casa e a portinha – entre o saguão do shopping e o cenário do Papai Noel. Voltou-se. O sr. Biglom a fitava reclinado na poltrona, observando-a, analisando-a, e fumando aquele cachimbo enorme, que emitia uma fumaça dourada.

Rosana piscou. No momento, parecia procurar as palavras adequadas, mas então viu, à sua esquerda, um mural no qual havia vários recortes do jornal da semana. Aproximou-se, leu as manchetes.

“MÃE E FILHA SOFREM ACIDENTE FATAL NA SAÍDA DO SHOPPING”

“PILOTO ENLOUQUECE AO AFIRMAR TER VISTO MENINO VOANDO AO LADO DE BOING”

“UMA ADOLESCENTE EXIBE, NA INTERNET, FOTOS DO INTERIOR DO VESTIÁRIO DO TIME DE FUTEBOL LOCAL LOGO APÓS A PARTIDA DE SÁBADO”

“MENINA DEVORA TODOS OS PRODUTOS DA PADARIA”

“DESAPARECIMENTO DE MENOR CAUSA APREENSÃO”

“MENINA SUPOSTAMENTE DEVORADA POR CÃES”

Rosana franziu o cenho e cruzou os braços. Tinha recomeçado a tremer.

–O que é isto? O senhor coleciona manchetes bizarras de jornais sensacionalistas? – perguntou num fio de voz.

–Isto são as manchetes que ilustraram os jornais locais da sua cidade no fim de semana. Em que planeta a senhora vive?

Rosana desviou o olhar das notícias. Em particular, desviou o olhar da primeira e da última delas.

–O que significa isso?

Ele suspirou, irritado.

–Muito bem. Vejo que a senhora, ao fim e ao cabo, não entendeu nada e não pôde deixar de vir de improviso. Percebe que está violando o artigo 25 do contrato firmado? A senhora se arrisca a pagar uma multa.

O calor voltava muito rapidamente à Rosana. Ela apoiou-se na mesa e olhou o homem bem de perto.

–Uma multa? Por quê? – indagou, tentando tomar pé no assunto. Finanças parecia um bom começo: eram feitas de números e contratos e eram, portanto, algo sólido.

–Porque quebrou o artigo 25 do contrato que firmou com a “Personagens de Festa”!

Ele puxou um papel de uma gaveta, ajeitou os óculos sobre o nariz e leu:

–“Artigo 25: o empregador deverá informar qualquer visita de inspeção com pelo menos vinte minutos de antecedência. Caso contrário, se verá sujeito à multa estipulada no artigo 32 do Capítulo IV ‘Das Multas’”... etc.etc. Tenho certeza de que leu o contrato na íntegra antes de assinar. Não se faça de desentendida.

Rosana começou a rir. A situação parecia tão ridícula, depois de tão impossível, que não pode impedir as gargalhadas que a faziam dobrar-se diante da mesa.

–A senhora pode não achar tão engraçado quando nosso advogado a procurar, – observou o sr. Biglon guardando sua via do contrato. O acesso de riso redobrou. Mas, como tudo, depois de alguns minutos, o riso desapareceu. De alma lavada, Rosana sentou-se em uma cadeira puxou um velho maço de cigarros esquecido no bolso do casaco desde o inverno anterior e acendeu um para si.

–Não devia fumar, – observou o outro com um ar carrancudo. – Além do mais, estamos atrasados. Onde estão os clientes do shopping?

–Por que não? O senhor também fuma, – observou Rosana apoiando os pés gelados e molhados em um banquinho diante do fogão. – E estamos atrasados, claro. Os clientes devem estar se perguntando por que diabos o shopping não abre. E o shopping não abre, caro senhor, porque os seguranças tem ordem minha de não fazer nada até segunda ordem. Isso para não contar o pessoal que me viu entrar na sua... casa (ou talvez sumir na estepe, quem sabe?) e deve estar se perguntando porque não saio daqui. E, é claro, temos aqueles dois policiais que estão no meu shopping, fazendo perguntas sobre quem viu pela última vez um garotinho que é, no fim das contas, meu cliente. O senhor sabe do que eu estou falando?

–Sei, – respondeu o sr. Biglon tranqüilo.

Rosana o fitou através da fumaça do cigarro. Por que não estava surpresa?

–Por que não estou surpresa?

Ele balançou os ombros. Ela fez uma careta.

–Quer saber? Acho que foi o pai. O pai o matou e agora fica dizendo que alguém veio à noite e levou seu filho. Ou então ele o levou para um lugar retirado e está se fazendo de vítima... por que está fazendo que não com a cabeça?

–Você está enganada. O pai é inocente. Isso não tem nada a ver com o pai, absolutamente nada, – insistiu o sr. Biglon enchendo o cachimbo de novo. Pegou uma longa vareta que expôs ao fogo vivo do fogão, depois levou a chama até o seu cachimbo e tragou. A fumaça dourada espalhou-se de novo.

–Tem a ver com o quê? – perguntou Rosana, quando viu que ele não ia continuar.

–Ora, com o presente de Natal que ele me pediu.

Ela estremeceu. Sim, era isso, o soubera o tempo todo, desde que o jovem detetive lhe comentara sobre o caso. Embora não conhecesse os detalhes, tinha certeza absoluta de que o menino viera até Biglon e selara seu destino com ele.

–Como assim? – ela perguntou. O sr. Biglon pareceu impaciente. Levantou-se passeou pela saleta, voltou a sentar-se. O cachimbo tinha se apagado.

–Vamos ver, senhora: fui contratado como Papai Noel substituto do shopping. Qual é a minha primeira função?

–Perguntar às crianças como se comportaram no ano – reduziu Rosana, brusca.

–Que tolice! Minha primeira função é ouvi-las. Elas vêm até mim e me pedem o que querem de Natal. Eu ouço e lhes digo: “então, é isso mesmo que você quer?” E se elas me dizem que sim, só então eu verifico se merecem o que estão pedindo. A maioria delas merece, e sabe por quê? Porque a maioria é de gente boa. Não são muitos os que afogam gatos na privada porque gostam de vê-los morrer. A maioria o faz, porque quer saber o que acontece. Bem, acontece que o gato morre, como a senhora sabe por experiência própria.

Rosana percebeu que sua mão tremia ao segurar o cigarro. Como, em nome de Deus, Biglon sabia do gato que ela afogara na privada quando era criança?

–Não é maldade, é curiosidade... – ele continuou. – Lógico que depois do segundo gato, já a coisa muda de figura.

–O que isso tem a ver com a desaparição do menino? – ela interrompeu com a voz um pouco acima do volume que pretendia empregar.

–Tudo! O menino pediu de presente de Natal ir viver em outro planeta, – Biglon sorriu e fez um gesto esquisito com as mãos. –Você sabe, etês e tudo o mais, uuuuuhhh. Mas receio que ele terminará se cansando de ser objeto de experiências biológicas, você sabe. Nossos vizinhos cósmicos não tem muito respeito pelo ser humano. Ele é apenas um objeto de estudo, apenas isto, e lamento dizer que não creio que o garoto sobreviva mais de duas semanas nas mãos deles. Os etês são criaturas muito curiosas, mas carecem de piedade. Lógico, não tem ascendência mamífera...

–Está me dizendo que o garoto foi abduzido? Espera que eu diga isso à polícia e que eles acreditem? – interrompeu Rosana.

O sr. Biglon deu de ombros outra vez.

–Estou lhe dizendo a verdade. O que a senhora dirá à polícia é problema seu.

A moça levantou-se e aproximou-se de Biglon outra vez.

–O senhor é louco? – perguntou com seriedade.

–A senhora viu nevar dentro do seu shopping e atravessou uma estepe nevada situada na praça de alimentação. Acha que estou louco? – rebateu ele, glacial.

Rosana não disse nada por um momento. Ele aproveitou:

–Desculpe pela neve e tudo o mais, mas a sua árvore de Natal era uma piada. A música, horrorosa. A casinha, minúscula. E aqueles enfeites de plástico? Uma afronta! Se Klaus Nicholas visse isso, você ia se arrepender de ter nascido! Tive de tomar uma providência!

–Quem é o senhor?

Biglon piscou, depois sorriu.

–Já viu minha carteira de identidade?

–Já ouviu falar em documento falso? Quem é o senhor? O que é o senhor?

–Não lhe direi meu nome, porque isso não corre na sua conta. Mas vou lhe dizer o que eu sou: sou um dos ajudantes do Papai Noel. Um dos verdadeiros ajudantes do verdadeiro Papai Noel.

Rosana endireitou-se mecanicamente, como se tivesse levado uma bofetada.

–Eu tenho o dom de dar às pessoas aquilo que elas querem. Exatamente aquilo que elas querem mas que não se pode adquirir em uma loja. Aquilo que elas desejam mais do que tudo, mas não tem coragem de admitir para si mesmas. Pelo menos os adultos não têm. Os adultos não tem coragem de sonhar, minha senhora, porque temem demais aos seus próprios pesadelos! Então desistem. Mas as crianças não. As crianças ainda ousam sonhar e desejar!

Levantou-se bruscamente e caminhou até o quadro mural e enquanto falava, ia arrancando do painel as notícias e jogando-as sobre a mesa:

–A menina que passou oito meses sem falar uma palavra por causa do sofrimento que a morte do pai lhe causou, pediu-me para reunir sua família para sempre, para que nunca mais sentissem falta um do outro! Realizado no mesmo dia! O garoto que me pediu para voar demorou um pouco mais. No final, não me pediu para ensiná-lo à aterrissar, de modo que imagino que já esteja um tanto arrependido, mas é tarde demais. A garota de quatorze anos queria ser invisível, para poder visitar o vestiário masculino do seu time predileto depois do jogo. Queria ver os jogadores nus. Já era meio crescida, mas a atendi porque fazia quase um século desde que encontrei uma menina de quatorze anos que realmente acreditava em Papai Noel. E também porque foi sábia: pediu para ficar invisível somente enquanto estava dentro do vestiário. Mereceu cada instante de prazer que teve. E foram muitos. A outra, entretanto, foi tola. Comeu o que havia na padaria e morreu de indigestão. Bem feito! O menino que a trouxe aqui, está há umas doze horas-luz de casa, completamente fora do alcance de qualquer um de vocês. Houveram outros, é claro, esses são os que saíram no jornal.

Virou-se para Rosana e sorriu de um modo especial, doce como mel, dourado como o sol. A cozinha ficou cheia das cores do verão.

–E você, Rosana, o que deseja? O que realmente deseja? Pode pedir. Quer que seu filho deixe seu pai e venha viver com você? Quer herdar o dinheiro da sua mãe? Livrar-se da irmã viciada em jogos que está custando todo o salário que você ganha, em dívidas e advogados? Quer ser rainha? Astronauta? Estrela de cinema pornô e levar uma vida muito mais animada do que a que leva agora? O que você quer?

A gerente do shopping olhou para o ele furiosa. Como ele podia saber tudo aquilo sobre ela? Como? Jogou o cigarro no fogo com um gesto brusco.

–E aquela notícia ali? – perguntou apontando com o queixo o último recorte que ainda pendia do mural.

“MENINA SUPOSTAMENTE DEVORADA POR CÃES”

O sr. Biglon pareceu constrangido.

–Bah! – fez ele. – Tolices.

–Estamos jogando o jogo da verdade, sr. Biglon. O senhor acabou de dizer um monte de coisas que são verdadeiras e que me envergonham bastante. E também já me falou de coisas que o orgulham. Agora diga-me algo do qual não se orgulha tanto.

Sentou-se na cadeira de novo, na ponta da cadeira.

–Diga-me, sr. Biglon, o que fez com a menina que foi devorada por cães?

–Você quer saber? – ele vociferou. – Quer mesmo saber? Então bem, eu lhe conto: Klaus Nicholas me despediu porque eu tenho um fraco por crianças, entendeu?

Rosana estremeceu, arrependida por ter perguntado. O rosto de Biglon transformou-se em uma máscara feroz. Os olhos arregalaram-se ainda mais, o azul da íris recortado por um aro externo prateado. As narinas expandiram-se, cheirando o ar. Os cabelos ruivos erigiram-se, a barba hirsuta espetando no ar a ponta afilada. A boca alargou-se, encheu-se de dentes e saliva e a língua de Biglon pendeu longa, pontuda e azulada de sua boca. Parecia um grande cão. Um predador. Rosana ergueu-se e deu um passo para trás agarrando a ferramenta para atiçar o fogo.

–Eu não posso resistir, – uivou a criatura. – Dou-lhes o que me pedem, mas de vez em quando eu pego uma para mim entende? Que droga, não é nada mais do que justo! Lhes dou o que me pedem! Qualquer coisa! É da minha natureza. Então às vezes eu... eu...

Arreganhou os dentes e rosnou de um jeito que Rosana nunca havia visto bicho algum rosnar. Nem mesmo em pesadelos.

–Chega, Biglon! Eu não sei quem você é, nem me interessa! Vou chamar a polícia! – ela ameaçou.

Foi a vez dele rir, mas o som de sua risada era insano, mau. No final de tudo, ladrou como um cão e bateu os dentes afiados uns contra os outros num som medonho.

–Vai usar o quê? Talvez o celular que ficou embaixo do ar-condicionado que ousou me desafiar? O pobre aparelho deu tudo de si hoje pela manhã, mas é claro, eu queria neve, neve de verdade! Foi uma luta e tanto: magia contra máquina! Divertido, não tinha passado por isso ainda. E no final de tudo, eu venci.

Ele avançou para ela sorrindo.

–Eu sempre venço.

Rosana deixou de bancar a heroina: largou o atiçador, deu meia volta a fugiu pela porta. Mergulhou para a luz gelada e branca e o frio a penetrou como mil agulhas. Jamais sentira nada assim. O peito doeu violentamente e ela dobrou-se. Há poucos passos da porta caiu de joelhos. Mas depois levantou-se e correu para o portãozinho e o atravessou na direção da estepe gelada.

Subitamente, estava de volta ao saguão. O frio diminuíra, mas não muito. O peito ainda doía. As pernas não obedeciam. Caiu de joelhos de novo, ofegando, lutando para não perder a consciência. Viu os pés de Biglon ao seu lado dentro do chinelo de lã xadrez. Alguma coisa pingava lá de cima, cristalino e pegajoso. Ela não levantou os olhos. Só soube que, com todo o coração, desejava que ele fosse embora. Ele e sua árvore de Natal, os vultos verde-acinzentados e sua capacidade de realizar desejos.

–Vá embora! Vá embora com suas coisas e nos deixe em paz! É isso que eu quero, é isso que eu desejo! Prefiro a mentira de um presente comprado! Prefiro os enfeites de plástico, o jingle horroroso e a neve de isopor! Você disse que ia realizar o meu pedido de Natal! Pois estou pedindo!

Ouviu um resfolegar aborrecido. Logo, Biglon agachou-se junto dela e murmurou junto ao seu ouvido com um hálito velho e podre, os lábios arreganhados numa careta do mais profundo desprezo:

–É por isso que os adultos perderam o Natal. É por isso que você perdem os enfeites, as árvores de Natal de verdade, cheias de neve verdadeira, é por isso que vocês não escutam mais o canto das fadas, dos duendes e das árvores. Vocês não tem colhões para a magia. Vocês acham que o Espírito Natalino é dar comida aos pobres e chorar diante de um comercial de televisão... Nada é mais poderoso do que o Espírito Natalino! Ele é a renovação em pleno Inverno, ainda que aqui seja Verão! É nascer quando outras coisas morrem, apesar de que outras coisas morrem, porque outras coisas morrem, por cima e às custas das coisas moribundas. É desfazer-se do que passou e renovar-se sem uma lágrima de pena, só gritos de júbilo. Por isso vocês choram, à cada Natal: vocês só tem olhos para o que deixaram para trás; o ano que passou; os dias que morreram, o medo, o monstro, o terror. E, bem feito: é só isso que vocês vêem.

Levantou-se, cuspiu ao lado dela e resmungou:

–Levante-se e pare de chorar. Eu ofereci, você pediu. Fique com a sua árvore de plástico.

Rosana viu os chinelos afastarem-se arrastando-se em direção à casinha, depois ouviu a porta bater com raiva. Quase no mesmo instante o frio começou a arrefecer e um som insistente e repetitivo encheu seus ouvidos. O jingle? Ela olhou para o lado: um boneco de plástico movia-se lentamente. Pura mecânica.

–Rosana! Meu Deus, você está bem?

Ela levantou os olhos e deu com Jorge que esforçava-se por levanta-la. Agarrou-se a ele, trêmula e sussurrou em seu ouvido.

–Biglon! Onde ele está?

Um curto silêncio. Além do ombro de Jorge, os atendentes das lojas formavam um círculo a uma distância respeitosa. Viu que Gilberto e aquele outro policial vinham abrindo caminho entre os demais.

–Não sei! Não posso compreender. A casinha... voltou ao que era... está vazia. Onde ele se meteu? – quis irritar-se Jorge. Só então Rosana teve coragem de voltar-se e contemplar o cenário.

Estava vazio. A casinha encolhera, voltara ao seu tamanho original. Rosana conseguiu levantar-se e observar o cenário com atenção. Logo, estremeceu.

Na parede da esquerda, presa com um percevejo, ainda tremula a notícia sobre a morte de uma menina supostamente devorada por cães.



domingo, 2 de dezembro de 2012

Ficção científica: Batismo de Fogo

Inacreditável!

Em algum momento da década de 90 eu escrevi o conto abaixo. Ele foi classificado em um dos prêmios literários promovidos pelo fanzine "Boletim Antares", organizado, editado e distribuído, na época, por Jane Terezinha Mondelo de Souza, mas não lembro (nem encontrei) o conto publicado em nenhum lugar. Em homenagem àqueles tempos, o texto abaixo segue com apenas algumas pequenas alterações, a maioria de ordem ortográfica. Vocês poderão "desfrutar" de um texto do início da minha carreira literária. Espero que gostem.

Por certo: o conto vai em homenagem à uma recente descoberta da NASA, cuja divulgação encontrei hoje, no Twitter do Antônio Luiz M. Costa. Encontraram gelo em Mercúrio, o planeta mais próximo do Sol

Gelo, e material orgânico.

Boa leitura!


MENSAGEM DE BORDO DO IATE SOLAR HÉLIOS 27, EM ÓRBITA DE MERCÚRIO, CAPTADO PELA ESTAÇÃO ESPACIAL WERNER VON BRAUM EM ÓRBITA CE VÊNUS, À 23 DE NOVEMBRO DO CORRENTE ANO. EMISSÃO: 13H 27MIN. HORA DE GREENWICH. RECEPÇÃO 13H 27MIN. HORA DE GREENWICH, CRONÔMETRO MARCANDO 17 SEG. DE DIFERENÇA. DURAÇÃO DA MENSAGEM: 2 MIN.27SEG.

SEGUE TEXTO:

“—Aqui é a sala de comando, responda controle de dados.

—Aqui é o controle de dados.

—Checagem de posição.

—Estamos a uma distância aproximada de 300.000km da superfície de Mercúrio. Órbita padrão sobre o tópico norte, há 400km do meridiano do planeta.

—Ok, Dieter, parece que você fez o dever de casa direitinho. Agora me faça um favor: monitore visualmente a região 45, a 195º do hemisfério austral do nosso planisfério.

—Um momento... Pronto. Já o tenho. Qual é o problema... espere! Um momento! Tenho uma leitura... não pode ser! Acho que temos um problema com nossos sensores óticos.

—Está vendo algo?

—Penso que sim, mas ali fora não deveria haver nada... Vocês também estão vendo?

—Descreva.

—Uma forma amarelada, semi-transparente.

—Afirmativo, nós também a detectamos. Temos um contato positivo.

—O que é aquilo?

—Não tenho a menor idéia. Talvez seja um tipo de manifestação solar ainda não identificada. Aplique a lista de classificação 376 e me informe dos resultados.”

SEGUEM 30 SEG. DE SILÊNCIO

“—Comando, já temos os primeiros resultados da checagem padrão 376. Não creio que seja um novo tipo de manifestação solar, senhor.

—Informe.

—Tem massa, mas seu volume é pouco maior que zero. Não possui radioatividade, seu albedo é extremamente baixo, a gravidade é igual a 0.01. Se movimenta. Vem direto para cá.

—Controle de dados, qual é a velocidade da manifestação?

—É de... droga, que hora para ficar escuro. Joca, você vai ligar o gerador de emergência ou terei de chamar Benjamim Franklin para fazer isso?”

FINAL DA MENSAGEM.

O IATE SOLAR HÉLIOS 27 DESAPARECEU DOS SENSORES DA ESTAÇÃO ESPACIAL WERNER VON BRAUM ÀS 13H 36 MIN, HORA DE GREENWICH.

DESTINO IGNORADO.

A ESTAÇÃO NÃO ENCONTROU NENHUMA ATIVIDADE NA REGIÃO 45 DE MERCÚRIO.

QUALQUER INFORMAÇÃO, É FAVOR TRANSMITIR EM PRIORIDADE DELTA À CENTRAL DE VÔOS ESPACIAIS (CEVE) DA TERRA.

AS FAMÍLIAS DAS VÍTIMAS AGRADECEM.

CONTRIBUA COM O FUNDO DE APOSENTADORIA DO ASTRONAUTA. ELE FAZ PARTE DO SEU FUTURO.

FIM DA MENSAGEM.

***

—Começo a pensar se você tem programado corretamente essa droga, —reclamou Daien. Vilca virou-se para ele com os olhos sombrios.

—Deuses o protejam, Daien, Não estou disposto a discutir com você, mas se insinuar mais uma vez que não sei programar um computador de bordo, arranco a sua cabeça.

Os dois estavam sentados na minúscula cabine de recreio da nave VIRGÍNIA 5. Daien estava consultando o mapa espacial da área onde se encontravam pela oitava vez e Vilca bebia um preparado de vitaminas e sais minerais, relendo pela quarta vez a mesma história em quadrinhos. Ambos sabiam que a viagem espacial não lhes ofereceria mais nenhuma novidade, e que não lhes sobraria mais nada para fazer senão discutir um com o outro, até retornar à Terra. O problema é que mal haviam chegado àquele planetinha ridículo, e ainda teriam de enfrentar três meses de viagem de volta. Nada melhor do que uma viagem espacial para terminar com a amizade entre dois homens, pensou Daien aborrecido.

A verdade é que ambos estavam nervosos. Aquele era seu primeiro serviço no Sistema Espacial de Entregas Rápidas (“entregamos qualquer coisa em qualquer lugar”, dizia o slogan), seu primeiro emprego depois de dois meses de estágio em uma estação espacial e quatro de inércia na Terra, à espera de um chamado. Eles haviam saído a seis meses da Academia e já começavam a sentir-se como estatísticas de Sociologia e Economia, quando o fim do ano chegou na Terra e todo mundo começou a mandar ou encomendar presentes das colônias. De repente, todas as empresas de entregas que trabalhavam com rotas interplanetárias estavam procurando pilotos, mesmo aqueles que não tinham experiência alguma, para suprir os pedidos que chegavam como uma enxurrada às agências.

E agora, lá estavam eles, Daien e Vilca, verdes como maçãs verdes em pleno outono, tentando parecer maduros e experientes para manter o emprego, discutindo idiotices no VIRGÍNIA 5, sobre o pequeno Mercúrio. Atrás deles a porta rangeu e abriu-se. Os dois enrijeceram as costas sem o notar.

O capitão apareceu.

Como toda vez em que o gordo e vermelho capitão da VIRGÍNIA 5 entrava em uma das cabines da nave, o ar se encheu do fedor de vodka barata que o acompanhava. Ele olhou para os dois astronautas com um olhar malicioso, grunhiu e sentou-se na cadeira que sobrava. Tirou do bolso uma garrafa e bebeu um trago. Vilca suspeitava que cada libra da bagagem do homem era aguardente de terceira qualidade. Torceu o nariz e voltou ao preparado e à revista. Que Daien se virasse com ele.

—O que está acontecendo? —balbuciou o capitão, tentando parecer irônico. Mas só conseguiu parecer mais patético ainda. —Por que não pousamos?

—O computador está procurando o farol. Sem o farol não podemos descer.

—E onde diabos está o farol?

Daien deu de ombros.

—A máquina o está buscando automaticamente. Quando o encontrar nos avisará. Se tivéssemos um portulano poderíamos descer sem o farol.

—Eu não faço portulanos, —interrompeu o homem da vodka. Um brilho esquisito luziu em seu olhos por um instante e Daien teve certeza de que ele possuía um, em algum lugar entre as garrafas, um portulano com todos os dados que necessitavam para pousar sem ter de depender do farol espacial de Mercúrio para guia-los. Pensou que se aquele tonel de álcool confiasse pelo menos um pouquinho nos dois, pousariam em menos de trinta horas. Mas o capitão estava bêbado demais para pensar.

—Não me olhe assim! —berrou ele batendo com a garrafa na mesa. A bebida respingou para todos os lados, e os dois rapazes pularam sobressaltados.

—Ouçam, pela última vez, eu não faço portulano, não tenho portulanos —sibilou ele. —Ficaremos em órbita aqui em Mercúrio até às 16h e 56 min e depois iremos para casa, entendidos?

Daien e Vilca se entreolharam surpresos.

—Que idéia é essa? Não poderemos pegar os cristais de sais que nos foram encomendados! —protestou o programador, assustado com a possibilidade de não dar conta do serviço.

—Danem-se os cristais. Vamos ter muita sorte se conseguir sair vivos daqui —resmungou o homem. Bebeu o resto do líquido, depois levantou-se e desapareceu pelo interior da nave.

—Eu não disse que era uma fria? —explodiu Vilca irritado. —Esse bêbado idiota se aposenta na semana que vem. Está se lixando para nós e os cristais de sais!

Daien o fitou longamente.

—Fica frio, Vilca. Não vamos sair daqui para a fila dos desempregados. Eu garanto isso.

***

—Acha que ele acredita na lenda? —perguntou Daien, olhando para as imensas “janelas”. Eram telas em que se reproduziam as imagens do exterior, captado pelas câmaras do casco e ajudavam a amenizar o sentimento de claustrofobia.

—Com tanta bebida, acreditará até mesmo em marcianos verdes —replicou Vilca.

Ambos estavam na pequena cabine de comando da nave, esperando o apito do piloto automático indicando que havia encontrado o sinal do farol. O aposento estava cheio de computadores, mostradores e luzinhas que piscavam. Daien ignorava tudo e deixava-se levar pela ilusão das “janelas”. Mercúrio e o Sol não eram visíveis dali, pois estavam sob a nave. Ou melhor, corrigiu-se, a nave é que estava sobre o planeta, em órbita padrão sobre o trópico norte. Já haviam dado duas voltas em Mercúrio, e nada do sinal do farol. Ele suspeitava que Vilca havia configurado mal o receptor, mas não se atreveu a abrir a boca.

—Eu gostaria de saber, —disse ele, finalmente. —Gostaria de saber se existe ou não.

—Oh, deuses, Daien! —gemeu o outro. Ele jogava xadrez com o computador, mas já ia perdendo de três a zero. Daien teria preferido “Labirinto Cósmico”. Não tinha paciência para jogar xadrez —nem para ver os outros jogar. —Não vá me dizer que acredita nessa idiotice de “arraia cósmica”. Não há vida no vácuo, lembra do professor de exobiologia, como era mesmo o nome dele?

Vilca endireitou-se, levantou o indicador e fez uma voz estridente:

—Senhores, senhores, o Espaço é o lugar mais sem imaginação que existe.

Relaxou diante do sorriso do companheiro.

—Se chamava senhor Sahlan, era rabino e quem não tinha a menor imaginação era ele.

Os dois riram por um momento.

—Se houvesse vida no vácuo, de que se alimentaria? —tornou Vilca, voltando ao jogo. O computador comeu-lhe um bispo e ameaçou a dama.

—Sei lá. Hidrogênio. Vento solar, asteróides, luz.

—Maldita máquina, me comeu o bispo com o qual pensava dar-lhe um cheque!

—Talvez obedeça uma ordem orgânica diferente da que conhecemos, hum? Que me diz?

—Hum, talvez deva fazer um roque...

—Você nem sequer está me ouvindo!

—Não vale a pena prestar atenção nas bobagens que você diz.

Vilca voltou-se para Daien. Fitou-o por um instante, depois disse:

—Em primeiro lugar, se a sua “arraia” se alimentasse de hidrogênio, consumiria mais energia comendo do que a ingerida, e morreria de fome. Depois, se ela “comesse” luz solar ou vento cósmico, seria feita de luz e radiação e provavelmente seria inofensiva. Se “comesse” asteróides, também morreria de fraqueza. Além disso, já imaginou a força de gravidade que ela necessitaria para gerar e manter seu corpo unido? E o volume que teria, para não explodir?

—Se sua pressão interior fosse muito reduzida, não precisaria de um campo gravitacional muito forte.

Vilca abanou a cabeça e voltou-se para o computador que conseguira infiltrar um cavalo em suas fileiras.

—Vou fazer o meu relatório diário, —sussurrou Daien.

—Ótimo. Faça isso.

O programador passou duas horas jogando antes de enjoar do desafio. Perdeu outro jogo, empatou o seguinte, pensou nos bons tempos da Academia, quando todo mundo tinha idéias realistas e só bebiam nos fins-de-semana, lembrou-se de uma garota chamada Laura, de quadris largos e cintura estreita, de um milhão de coisas mais, antes de um dos instrumentos de observação acender subitamente, piscando entre os demais.

Alguns minutos depois, Vilca contraiu as sobrancelhas, encarando a luz com preocupação. O aparelho luzia um diminuto marcador digital que saltava de um número para outro, regularmente, indicando que no hemisfério austral do céu visível da nave, há uns 200.000 km do VIRGÍNIA 5, uma série de diminutas estrelas estavam se acendendo.

—E essa? —resmungou ele, mexendo em alguns controles. A maioria daquele equipamento estava defasado e muitas vezes apresentava defeito. Mas desta vez a luz continuou lá.

O rapaz moveu as câmaras externas. As estrelas fugiram como se fossem cometas escrevendo padrões no céu. Seus rastros luminosos clarearam por um momento o rosto intrigado de Vilca e depois se foram.

Um pedaço de Mercúrio surgiu na parte inferior da “janela”. O sol resplandeceu à direita, aparentemente redondo, com as bordas franjadas, lembrando os desenhos que todas as crianças, fossem da Terra ou das Colônias, faziam. Se sua luz não fosse filtrada pelos instrumentos, Vilca ficara instantaneamente cego, mas mesmo assim sua luz era suficiente para colorir tudo com um brilho amarelo e apagar várias estrelas. Com um ajuste no computador, o rapaz criou um eclipse virtual e a estrela quase desapareceu. Só restou uma cinta fina e brilhante.

Agora o céu parecia povoado outra vez. Lá estavam as estrelas recentes, cinqüenta mil delas, pequenas candeias reunidas em um espaço ridículo para uma estrela. Ocupavam uma área de cinqüenta mil quilômetros quadrados, segundo um dos registros, e dali a pouco eram setenta mil pirilampos cósmicos na área. Antes que a contagem chegasse a cem mil, Vilca bateu com o punho no botão do alarme manual.

—Qual é o problema, rapaz? —indagou a voz embargada do capitão, mais distorcida ainda pelo som infame do rádio velho.

—É... é.... eu não consigo identificar. Não saberia dizer se é de fato um problema. O senhor poderia vir até aqui?

—Ir à sala de controles? —gorgolejou o homem com uma risada. —Era só que me faltava. Para que vocês estão sendo pagos?

—É que... é uma nova constelação —“que coisa idiota para se dizer”, ralhou Vilca consigo mesmo. Houve um instante de silêncio.

—Ir até aí olhar pela “janela”? Não mesmo! Nem morto você me farão olhar para as estrelas de novo. Nem duro de bêbado, nem morto. Coisas do demônio é o que elas são, fornalhas do inferno!

A porta da cabine de comando se abriu repentinamente e Daien entrou esbaforido. Vilca deixou o capitão praguejando sozinho e voltou-se para o amigo, pálido. Apontou para a “janela”. Daien arregalou os olhos para as cem mil luzes, brilhando como uma árvore de Natal. Tremia da cabeça aos pés.

—Bem, —comentou Vilca recuperando parte do sangue frio. —Devo reconhecer que tem uma coisa muito esquisita lá fora.

A formação de luzes havia parado de crescer. Sua era forma irregular, lembrava uma ameba. As luzes piscavam como pirilampos em noites de verão. Lentamente eles moveram-se para um círculo perfeito e por um momento foram a imagem e semelhança do Sol. Foram algo mais. Foram, cada uma delas, um sol. Depois, a medida em que iam se tornando uma coisa única e homogêna, pareceram diminuir a luz, até que se tornaram apenas uma sombra amarelada, uma cor contra o espaço. Através dela brilhavam palidamente as estrelas.

“Aquela ali é Rigel, a que está brilhando através dessa coisa, é Rigel, da constelação de Órion, e Betelguesse e Belatrix,” pensou Vilca perdendo terreno para o pânico que o invadia. “É Riguel e Betelguesse, pelos deuses, e eu vou gritar daqui a pouco.”

—Análise espectral —disse alguém muito distante dele. Vilca piscou e olhou o amigo sentado na cadeira ao seu lado. Daien encarou-o com os olhos muito abertos.

—Análise espectral, vamos! — ele repetiu enérgico.

Os dedos de Vilca voaram sobre os instrumentos e estremeceram quando Daien começou a rir ao seu lado, um riso histérico e agudo que feria o ar em agulhadas desconfortáveis.

—Adivinhe o volume daquela coisa —ele perguntou e então riu de novo. —É próximo a zero, ouviu?

—Pelos deuses, —sussurrou Vilca entredentes, mas pareceu-lhe que até a Terra ouviria suas palavras. —Pode ser, mas não está vivo. Não pode estar vivo. É impossível!

Em resposta, vários relâmpagos azuis correram de ponta a ponta o círculo irregular e em algum lugar do VIRGÍNIA 5 eles ouviram uma porta se abrir. O radar piscou simultaneamente ao resultado que saía do espectrômetro, que as mãos trêmulas de Vilca agarraram.

—É feito de...

—Um momento,—interrompeu Daien. —aí vem um asteróide.

—O relatório diz que é um pedaço de gelo tipo IV, com traços de ferro em sua composição —respondeu Vilca automaticamente, satisfeito por poder pular a análise da sombra colorida.

—Olhe só aquilo!

Raios azulados correram outra vez pela “cor” e pareceram concentrar-se em um ponto.

—O asteróide passará à 3.000 km da coisa —advertiu o programador.

—Duvido, —sussurou Daien. —Duvido muito.

—O que está querendo... —Vilca interrompeu-se quando uma espécie de tentáculo estendeu-se através do espaço saindo da coisa e envolvendo o asteróide com repentina velocidade. O pedaço de gelo se desintegrou numa explosão silenciosa. Em seguida o tentáculo recuou e a coisa pareceu aguardar.

—Deuses.... —gemeu Vilca.

—Bem, se aquilo não é um ser vivo, acabamos de observar o primeiro ser inanimado que se movimenta em direção da comida, e a come, nos anais da exozoologia —sussurrou Daien apoiando-se no encosto de sua poltrona.

—Mas o asteróide ainda está lá.

—O quê?

—Ele diminuiu de tamanho, até que os sensores o perderam, mas agora voltou ao tamanho normal e está inchando como um balão... mas não possui brilho! A luz do Sol não se reflete nele!

Daien deixou um sorriso deslizar pelos lábiso.

—Aposto minha dentadura como aquela coisa aumentou o seu albedo.

Vilca confirmou com um aceno nervoso.

—Sim, —conseguiu dizer. —Ela deve abserver toda a energia dos elétrons, a tal ponto que eles deixam de ser estimulados pela radiação solar. Provavelmente alguns deles caem sobre o núcleo, reduzindo o volume da matéria e aumentando sua densidade e então, por estarem sob um maciço bombardeio de fótons, são super-energizados, incham e....

Para ilustrar a conclusão de Vilca, o asteróide, agora muito maior do que a primeira vez que o haviam detectado, brilhou numa explosão muda, depois sumiu atrás do eclipse virtual.

—Vamos sair daqui, —pediu Vilca. —Vamos voltar para a Terra e esquecer esse negócio de cristais de sais mercurianos. Dane-se a entrega, o capitão tinha toda razão.

Daien concordou com um gesto.

—Daqui a pouco essa coisa identificará nosso albedo e estaremos em apuros.

A porta se abriu subitamente e o cheiro de vodka feriu as narinas dos dois rapazes. Daien sentiu o estômago revirar ao mesmo tempo em que uma garrafa voou, espatifando-se contra a tela central, que estremeceu e apagou-se em seguida. Uma saraivada de cacos de vidro se abateu sobre o jovem, ferindo-lhe o rosto. O capitão saltou sobre os controles gritando histérico:

—Nãoo! A arraia! Vamos embora! Deus das estrelas, esse demônio vai comer a minha nave!

Vilca empurrou-o com violência, tirando-o de cima dos controles, jogando-o de costas contra um dos consoles que regulavam a temperatura. As coisas podem ficar muito quentes por aqui, ele pensou enquanto o capitão escorregava para o chão soluçando como uma criança, balbuciando palavras desconexas.

—Você está em ordem? — indagou ele para o companheiro.

—Estou, estou —respondeu Daien. Em seguida gemeu. —Oh, não. Essa não!

Vilca voltou-se para ele outra vez. Daien estava pálido e trêmulo, tirando os cacos da garrafa estilhaçada de cima dos controles.

—O que foi?

—Esse bêbado idiota! Esse maldito bêbado idiota!

Vilca agarrou o braço do companheiro e o sacudiu com força.

—Pare de praguejar! Isso não é informação!

Daien passou os dedos sobre o ferimento no rosto e mordiscou o lábio inferior.

—Ele danificou os controles de pilotagem automática. Temos de esperar que ele termine a contagem de tempo de órbita para destravar os controles.

Vilca olhou para fora, para o pedaço da arraia que viam na tela danificada. Lambeu os lábios. Rigel piscava através da cor, como se Órion fosse um caçador caolho.

—Quanto tempo? — perguntou, olhando para a “cor”.

—Duas horas.

O capitão soltou um ganido e por longos segundos, em toda a nave, o único som que se ouviu foi o dos soluços do homem sentado no chão da cabine de comando.

Meia hora depois, a arraia começou a se mover no espaço.

***

Vilca sentia os olhos ardendo mas não se atrevia a desviá-los do radar. Três asteróides já haviam sido “caçados” pela criatura. Eles haviam movimentado as câmaras e podiam observar agora cerca de três quartos da forma, mas isso parecia ser até pior do que vê-la por inteiro. A criatura combinava suavidade e rapidez numa estranha beleza.

Aparentemente possuía um radar próprio ainda mais potente que os da VIRGÍNIA 5, porque detectava suas presas antes dos sensores da nave. Quando isso acontecia, uma série de raios azulados atravessavam sua estrutura diáfana, e se concentravam em um ponto o mais próximo possível do asteróide em movimento. Depois dava o bote, o engolia, devorava a força de seus elétrons e o deixava partir rumo a sua inexorável destruição.

E depois aguardava novamente.

Atrás do painel de instrumentos, Daien tentava desarmar manualmente o piloto automático sem danificar o sistema de navegação da nave. Suas mãos tremiam e sentia o suor escorrer pelas têmporas frente ao emaranhado labirinto do sistema de navegação. Havia decidido fazê-lo quando calcularam a órbita da nave em relação à criatura e descobriram que em pouco mais de uma hora estariam tão próximos da arraia que não faria falta ela dar o bote para devorá-los. Até então haviam passado desapercebidos. Vilca imaginava que o movimento dos asteróides era o que primeiro chamava a atenção do caçador, mas já por duas vezes havia deixado de lado dois pequenos e rápidos asteróides, por dois outros maiores e mais lentos. Detectá-los era uma questão de tempo.

Daien gemeu e tentou encontrar uma posição menos desconfortável. Seus pulsos e ombros ardiam de dor. No início tudo correra bem, desativando um e outro sistema, desligando partes inteiras e tornando a ligá-las. Mais da metade da nave já estava aos cuidados do computador programado por Vilca. Os motores já lhe pertenciam, a mistura de ar, a temperatura. Quase tudo. Faltava apenas o sistema de navegação.

Uma gota de suor escorreu-lhe testa à baixo, e alojou-se incomodamente na ponta do nariz. Deuses, ele pensou, como faz calor aqui embaixo!

Foi então que um pequeno asteróide aproximou-se da área onde o VIRGÍNIA 5 estava parado. Como sempre, a arraia detectou-o primeiro e avançou lentamente em sua direção.

***

Vilca observou a grande mancha colorida mover-se alguns quilômetros. Atrás dele, o capitão ressonava destilando o odor da bebida por toda a cabine, cujo ar já parecia azedo. O rapaz sentia-se enjoado, cansado e sujo. Queria tomar um banho, dormir e só acordar quando estivessem em órbita ao redor de alguma colônia segura outra vez, em algum lugar onde ninguém acreditava em vida no vácuo.

“Se bem que, o que é vida? Um monte de álcool ressonando à suas costas ou uma criatura estupenda, fruto da imaginação interminável das estrelas, da evolução e da Natureza? Queria o senhor Sahlan estivesse aqui! Oh, sim, como eu ia rir da sua cara!”

Então pôs-se de pé de um salto.

—Daien! Ela nos encontrou!

Daien levantou a cabeça com força e bateu com ela na tampa que fechava o painel. Ignorou a dor e olhou por cima dela, horrorizado.

A criatura não os vira a princípio, porque saíra em perseguição ao asteróide. Por outra parte, o albedo da nave recoberta por uma fina camada de gelo era relativamente insignificante em comparação aos pedaços de gelo. Porém agora, a meio caminho da sua caçada, detivera-se lentamente, os raios de reconhecimento percorrendo seu corpo. Identificara uma massa enorme e metálica, que irradiava calor.

—Alguém se lembrou de pedir ajuda? — gemeu Daien.

—Não seja tolo! —ganiu Vilca. —Levariam três semanas para chegar até aqui, se viessem da base de Vênus.

A arraia hesitou um instante, depois começou a avançar na direção do VIRGÍNIA 5, disposta a vencer os 150.000 km que os separavam.

Daien soltou uma exclamação abafada e voltou ao sistema de navegação e o cheiro dos plástico aquecido misturado com o da bebida do capitão.

Súbito, os olhos do bêbado abriram-se grossos e cheios de raias vermelhas. Pôs as mâos diante do rosto e gemeu:

—NÃÃÃOOO!

—Cale-se! —gritou Vilca, satisfeito por poder tirar os olhos da criatura espacial. —Cale-se ou o porei a ferros em sua cabine.

O rapaz sentou-se diante de um instrumento que marcava a distância entre eles e a arraia, desligando o sistema de câmaras. As telas embranqueceram e as luzes da cabine acenderam-se imediatamente. Era um alívio deixar a criatura e toda sua exuberante impossibilidade do lado de fora. Mas ela estava lá. “Não se esqueça, disso, você não pode vê-la, mas está lá!” gritou sua mente. Seus olhos pousaram sobre o marcador digital e ele percebeu que estava tremento.

—Por favor, Daien —murmurou,—ande depressa.

—Distância? —a voz de Daien era um som cavo e metálico e Vilca estremeceu.

—100.000 km.

Daien mordeu os lábios e nem notou que eles sangravam. Suas mãos pareciam hábeis aranhas tateando na finíssima teia de suas possibilidades. Sabia que não faltava muito, nem para que ativasse o sistema propulsor, nem para que a criatura os alcançasse.

—Maldita seja a hora em que eu disse que queria saber se essa história era real ou não! —praguejou.

Pegou um fio e o puxou delicadamente. Mas o plástico saltou de suas mãos como uma mola, ameaçando enrolar-se nos demais. Novamente Daien o puxou, trazendo um emaranhado verde junto. No emaranhado surgiu uma brecha e, lá no fundo, uma placa de cristal onde se faziam as conexões. Era só mudar um ou outro fio de lugar. Ele enfiou a outra mão através da brecha, com a precisão de um médico.

—Está a 50.000 km —anunciou Vilca.

—Muito bem. Quando eu contar três, você liga os propulsores e pouco me importa se vamos direto rumo ao Sol ou nos esborrachamos contra Mercúrio —resmungou o engenheiro alterando uma das conexões.

—Um...

A mão de Vilca pousou sobre o “enter” de seu console. Repassou mentalmente a rota programada pela enésima vez e estremeceu. Sabia que se o apertasse cedo demais, a faísca provocada mataria Daien e o deixaria irremediavelmente à mercê da arraia.

—Dois...

—Ela está à 25.000 km. Suponho que esteja preparando o bote.

Vilca surpreendeu-se pois apesar do seu corpo todo tremer, sua voz soou firme.

Daien moveu um pino em direção ao buraco onde deveria encaixar-se para terminar o serviço, mas deu-se conta de que tremia demais para colocá-lo no lugar.

—Merda, —gemeu irritado e passou a mão esquerda sobre os olhos. Depois respirou fundo e tentou de novo.

O pino escorregou de suas mãos para dentro do buraco e desapareceu, encaixando-se suavemente no cristal.

—Três! Três! —gritou, puxando a mão com violência, arriscando-se a puxar consigo todo o sistema de fiação.

O dedo de Vilca caiu sobre o “enter” com força.

Uma centelha saltou do dínamo e espalhou-se quente como a vida nos controles da nave. A VIRGÍNIA 5 iluminou-se, saltou para frente e começou a sair da órbita de Mercúrio.

No mesmo instante, a criatura saltou em sua direção.

—Estamos nos movendo! Estamos nos movendo! —gritava Daien prensado no chão da cabine pela aceleração.

—Ela também.

—O quê?

—Ela deu o bote. Está à 15.000km.

Um silêncio. Daien deixou de resistir contra a aceleração que os tirava das garras gravitacionais de Mercúrio e percebeu que estava rezando, balbuciando qualquer coisa parecida com uma oração.

—10.000km.

Outro silêncio. Agora o capitão gemia alto, amaldiçoando seus ajudantes e as estrelas.

—5.000km e caindo. 3.000km. 2.000km. 1.000km.

A voz de Vilca era um sino dobrando fúnebre numa cidadezinha do interior, fuzis anunciando a morte de um soldado, o som dos esquifes sendo sugados pelo vácuo em estações espaciais.

—900km. 800km.

Ambos imaginavam como seria ter cada átomo do corpo em colapso. Haverá dor? Não, não haveria tempo, pensou Daien. Consciência? Vamos pensar até o último instante antes da absorção maciça de energia do Sol provocar a explosão final? Talvez não, se os pensamentos são correntes de eletricidade no cérebro. Pensaremos quando ela nos devorar? Saberemos que somos parte de uma maravilhosa criatura do espaço? Daien fechou os olhos, depois abriu-os em pânico, odiando a escuridão.

O silêncio prolongou-se. Estendeu-se. Então o rosto cansado de Vilca surgiu sobre a aba do console. Estava pálido e tinha olheiras.

—Saia daí. Ela está à 1.000km, —disse.

—O quê? —engasgou-se Daien.

—Parece que a criatura não pode seccionar-se. Está encolhendo outra vez. Saia daí, companheiro, nós escapamos.

***

Vilca e Daien estavam sentados na minúscula cabine de recreio do VIRGÍNIA 5. Vilca bebia um preparado de vitaminas e sais minerais e Daien jogava xadrez com o computador. Estavam à dois meses de casa.

—Ninguém vai acreditar em nós, —resmungou Daien movendo um peão.

—Temos tudo gravado, —murmurou Vilca, estóico.

—Sabe o que me intriga? —prosseguiu Daien como se não tivesse sido interrompido. —Se ela é uma criatura viva que não pode dissociar-se, onde estava quando chegamos? Você disse que ela foi acendendo as luzes uma por uma, até...

—Até a configuração final —concordou Vilca. —Era nisso que eu estava pensando.

Os roncos do capitão chegavam até eles melancólicos e solitários, porém seguros. Vilca sorriu:

—Não sei se você vai acreditar em mim, mas terá de engolir. Afinal, você foi o primeiro de nós dois que reconheceu vida na arraia.

Daien encarou o sorriso do companheiro compreendendo como era raro vê-lo sorrir, e piscou curioso.

—O que você acha que ela estava fazendo quando chegamos? —perguntou, impaciente.

—Ela estava dormindo, Daien.

O rapa ficou pensando, depois sacuidu a cabeça, incrédulo.

—Com o que sonharia uma criatura dessas?

Vilca deu de ombros.

—Com comer asteróides, com devorar cometas, com transformar-se no Sol. Com visitar as estrelas, como nós, quem sabe?

—Ninguém vai acreditar em nós, —repetiu Daien e descobriu, decepcionado, que o computador comera-lhe a dama.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Conto infantil: Sir Humbert e o dragão


Você já ouviu falar em Sir Humbert do Campo Verde? Não? Pois não se preocupe. Ninguém ouviu falar neste cavaleiro, com exceção de sua dama, a dengosa Flor de Lis, que era bonita, mas tampouco famosa. O problema é que o sonho de Sir Humbert era ser tão conhecido quanto os Cavaleiros da Távola Redonda, os Nove do Anel ou aquele pessoal que procurava o Ouro dos Nibelungos, perdido no Reno.

–Ah, Betinho, mas isso não tem importância alguma, – ronronava Flor de Lis.

–Tem, sim! – bradava o cavaleiro de armadura reluzente, polindo o seu escudo com o brasão de família. –Quero ser referência da fina flor da cavalaria andante! Quero ser apontado nas justas e dar autógrafos nas feiras! Eu quero ser famoso com Lancelot!

Flor de Lis suspirava e balançava a cabeça e voltava ao bordado tamanho família que ela estava fazendo para decorar uma das paredes do castelo em que eles moravam que, diga-se de passagem, era tão frio que a moça preferia passar o inverno na casa do copeiro e sua família, uma casinha pequena e acolhedora, cheia de crianças alegres e com uma única lareira bem quentinha. E como Flor de Lis não parecia dar muita bola para seu sonho de fama, um dia Sir Humbert se revoltou, montou no seu cavalo Relinchante, e partiu em busca de aventuras que tornassem seu nome sinônimo de lenda.

Infelizmente, porém, o sujeito sempre chegava atrasado às ocasiões. Perdeu mais de uma oportunidade para salvar princesas de ogros e feiticeiros, foi finamente driblado em torneios por outros cavaleiros – tão ávidos por fama quanto ele, diga-se de passagem – e toda vez que chegava a uma aldeia conhecida por viver ao pé de um castelo encantado, encontrava os aldeões em festa porque “Sir Não-sei-das-quantas” ou “O Cavaleiro Sabe-se-lá-quem-era”, o tinha desencantado a não mais de dois ou três dias. Humbert chegou à Camelot na manhã em que o Rei Arthur decretou férias coletivas. Entrou em Tintagel, na tarde em que Morgana se retirava para passar um período de estudos em Avalon. Cruzou Osgiliach em direção à Minas Tirith, em Gondor, na última noite das festas de aniversário do Rei, e apareceu em Worms em um dia em que havia tanta neblina que não se podia enxergar o outro lado das estreitas ruas do burgo, quanto mais uma aventura em algum lugar remoto. Não, decididamente, a sorte não sorria a Sir Humbert! O cavaleiro já andava pensando que era um pobre coitado, literalmente, até porque sua bolsa de moedas andava mais leve do que seu estômago vazio, e o garboso Relinchante achava-se reduzido à pele e osso, como se fosse um simples pangaré. O coitado começava a cogitar a volta para casa e em terminar seus dias como um castelão qualquer, quando ouviu falar sobre um terrível monstro chamado Esminge que andava assustando viajantes em uma estrada próxima ao reino de uma certa rainha, cujo nome ele preferiu não saber, pelo menos não antes de topar com o bendito monstro e ter deixado de ser o cavaleiro mais desconhecido do mundo medieval.

Então, acompanhemos nosso valoroso herói estrada à fora, muito concentrado em ver na paisagem ao redor os primeiros sinais da presença do monstro. Olhos atentos. Mãos firmes, segurando a rédea. A viseira do elmo levantada, a lança pronta para ser usada. Suando à bicas, que dentro da armadura fazia um calor infernal, o cabelo colando na sobrancelha, uma coceira danada na orelha, uma coceira danada que ele não podia coçar porque o elmo era muito apertado. De repente, Relinchante vê um tufo de pasto especialmente apetitoso alguns metros fora da estrada e, ora, o pobre cavalo não via comida de verdade desde o dia anterior, assim que, apesar dos protestos e puxões na rédea, o bicho saiu da estrada e abaixou o pescoço para pastar. O nobre cavaleiro, atrapalhado com o movimento do animal, perdeu o equilíbrio e sem mais aquela caiu de nariz na terra, rolou um barranco e terminou meio enterrado na areia quente e branca da praia com um grito de susto. Relinchante levantou o focinho e o fitou com ar tolo, enquanto mastigava deliciado o saboroso petisco, e depois, ainda mais de repente quanto decidira sair da estrada, soltou um relincho espantoso, deu meia-volta e desapareceu a todo o galope, como se tivesse o diabo nos calcanhares.

Sir Humbert, não viu a cena. Ocupado em desenterrar o elmo da areia – elmo dentro do qual, diga-se de passagem, continuava enfiada a sua nobre cabeça, – só percebeu o galope selvagem de sua montaria perdendo-se na estrada. O cavaleiro finalmente conseguiu livrar a cabeça e sentar-se, ainda zonzo.

–Arram... hum, com licença... – comentou uma voz profunda, melodiosa e incrivelmente bem educada. – Será que o senhor se importaria de... bem, como direi... arram... de sair daí? Está sentado sobre a ponta da minha cauda, sabe?

O cavaleiro voltou-se de muito mau-humor, disposto a descontar tudo em cima do almofadinha que estava falando com ele, e deparou-se com a razão pela qual Relinchante saíra na disparada. E a razão era, como o leitor bem pode imaginar-se, ele. O monstro em pessoa! Aquilo só podia ser Eminge, porque nada era mais aterrorizante do que ele. E, bem Esminge era um dragão. Pés com garras enormes e afiadas, escamas grossas como a melhor couraça que Humbert já imaginara, uma barriga balofa, redonda e satisfeita, asas negras como a noite, um pescoço como a torre de uma igreja, uma cabeçorra imensa, horrenda, com um focinho enorme, dentes pontudos, grandes bigodes, olhos saltados e um imenso chapéu de palha, imenso, chamativo e de péssimo gosto!

–Oh... – fez o cavaleiro a ponto de desmaiar.

–O senhor está bem, eu suponho... – fez o monstro baixando ainda mais a cabeça, preocupado. – O tombo foi feio, mas espero que não tenha se lastimado.

Sir Humbert, diante da emergência da situação, lembrou-se de algo que haviam lhe dito há alguns anos: que a melhor defesa é a surpresa. Ou que o melhor ataque é a defesa. Ou qualquer coisa assim, não se pode pedir ao pobre que se lembre perfeitamente de algo diante de uma situação dessas. O caso é que Humbert pôs-se de pé o melhor que pode e, na falta de sua lança, lançou mão de sua espada, uma coisa ridícula que tinha comprado com alguns trocados num saldão de um ferreiro pouco antes de sair de casa. A espada era pequena, mal feita e sem fio, mas tinha um punho lindo e como até então Humbert não precisara sacar dela para nada, não tinha, ainda, pagado aquele mico.

O dragão, entretanto não riu. Fez um bico com o focinho imenso e estreitou os olhos como se avaliasse o inimigo que tinha diante de si.

–O senhor continua pisando na ponta da minha cauda, – soprou o fantástico animal. –Saia, antes que eu o tire daí à força.

Sir Humbert juntou toda a coragem que tinha e provocou:

–Experimente fazê-lo, sua lagartixa tamanho família.

Se Esminge achou aquela observação uma ofensa, não demonstrou. Debruou-se sobre o cavaleiro e ao invés de torrar o homem com um jorro de fogo digno de um vulcão, limitou-se a pegar Sir Humbert com a ponta do indicador e do polegar e levantá-lo de onde estava, como se fosse um inseto desagradável.

–Pronto, filho, – fez o bicho colocando nosso herói no chão. – Agora suma-se antes que eu perca a minha paciência. Preciso terminar meu banho de sol.

–Em guarda, monstro! Em guarda! – ameaçou Sir Humbert sem tomar conhecimento das palavras do dragão. Esminge revirou os olhos e suspirou uma baforada de fumaça.

–Ah, mas assim não é possível! Não é possível, entende? – disse ao cavaleiro. – Estou no meu horário de descanso. Des-can-so! Está no contrato, assinado e registrado na corte do rei Arthur para qualquer um ver! Desse jeito vou de me queixar ao sindicato!

Humbert piscou, surpreso pelo palavreado de Esminge. Algo no meio daquela algaravia – “contrato”, “registrado” e “sindicato” – o fizeram lembrar das férias coletivas em Camelot e por alguns segundos ele cogitou averiguar melhor aquela história. Claro que se tivesse se dado ao trabalho de querer ver o contrato descobriria que Esminge estava inventando uma história para afastá-lo dali, mas a oportunidade de fazer honra e fama estava ao alcance da sua mão – de sua espada diminuta – e não seria um pedaço de papel que ia afastá-lo de tudo o que buscara durante tanto tempo. Por isso, ele ignorou o discurso do dragão e replicou:

–Prepare-se monstro! Vou escrever meu nome na História com o seu sangue!

Esminge revirou os olhos e bateu com as unhas enormes na areia fofa.

–Ai, ai, gostaria de ter ganhado uma pérolazinha por cada vez que ouvi isso. Teria um tesouro duas vezes maior do que tenho – resmungou para si mesmo. Depois debruçou-se sobre Sir Humbert e deu um piparote em sua espada, que voou longe. Sir Humbert viu a lâmina reluzir na distância e recomeçou a suar – mas agora de medo. Estava diante de Esminge, só, desarmado, protegido por uma armadurazinha que não era nada para o bicho. Quando sentiu a cauda do dragão enlaçá-lo pela cintura, era tarde demais! O abraço das escamas apertava com firmeza sua barriga.

–Bem, mocinho, vamos ver se eu me explico com clareza – começou a criatura, a boca tão perto de Humbert que se ele estendesse o braço, poderia tocar um dos bigodes do bicho. Ou um dente. Mas ele, é claro, não fez nada disso, até que porque o bafo de Esminge era tão terrível que qualquer um ficava tonto só de senti-lo. –Eu não existo. Percebe? Sou um bicho imaginário. Mítico. Só existo nos pergaminhos de histórias. Uma alucinação. Entendeu?

Sir Humbert pôs cara de quem não entendeu e fez que não. Esminge sorriu – e, francamente, você não ia querer ver o sorriso dele, não ia querer mesmo, sobretudo àquela distância, com todos aqueles dentes...

–Meu caro cavalheiro... você está perturbado pela sua busca à fama – resmungou o monstro e horrorosas colunas de fumaça saíram pelo seu nariz. – E a prova disso é muito simples: você segue respirando?

Sir Humbert fez que sim.

–Seu coração ainda bate?

O cavaleiro prestou atenção um momento, depois concordou.

–Então, você ainda está vivo?

–Estou, – respondeu timidamente o cavaleiro.

–Esta é a melhor prova de que eu não existo, entendeu?

Sir Humbert pensou, pensou, esforçou-se mesmo, de verdade! Mas terminou muito confuso:

–Não... desculpe, eu não entendo. O que eu ainda estar vivo tem a ver com o senhor ser um monstro imaginário?

O dragão arreganhou os dentes numa ameaça mortal:

–Muito simples, meu amiguinho: se eu fosse real, já teria devorado você. E não estaríamos tendo esta conversa.

Desta vez Sir Humbert entendeu, e entendeu de verdade! Empalideceu como se fosse um nabo branco, desses que se põe na sopa, e estremeceu, apesar do suor e do calor.

–Bom menino, vejo que você entendeu o recado, – fez Esminge pondo o cavaleiro de volta ao chão e ajeitando o chapéu medonho na cabeça. Era realmente um objeto muito feio!

–Agora, meu caro cavaleiro, depois deste surto, você voltará ao seu reino e ficará famoso. Sabe como? Vai trocar essa sua espada ridícula por um alaúde. Cante coisas mais reais do que eu: amor verdadeiro e eterno, as belezas de sua amada, a alegria de uma casa feliz. Agora vá, vá de uma vez. Cante canções, escreva livros, invente aventuras. E não me preocupe. Se eu for real, o procurarei para pedir um autógrafo. Agora vá.

Sir Humbert piscou um pouco, pensou que, bem, podia ter perdido a cabeça e ao final só perdera uma espada rombuda e um cavalo magro e foi se afastado por uma trilha em direção à estrada. A medida em que se afastava do covil de Esminge percebia mais e mais o absurdo de sua aventura e terminou convencendo-se que, de fato, Esminge não existia, dragões são animais imaginários e tudo aquilo não passava de baboseira medieval. De volta à seu lar e aos braços de Flor de Lis, arrendou o castelo para quatro malucos que queriam abrir ali uma escola para jovens bruxos e comprou uma casinha vizinha à do copeiro, uma casinha quente no inverno e fresca no verão. Dedicou-se à compor músicas de amor que atraíram gente de todos os lados do reino e tornou-se, enfim, famoso.

Quanto à Esminge, depois daquela, e com receio de terminar encontrando um cavaleiro armado até os dentes que desse cabo dele, como haviam dado à outros nobres representantes de sua raça, como Smaug ou Fafnir, resolveu mudar-se. Fechou sua caverna e foi morar numa ilha do Caribe. E em vez de tomar sol junto às falésias, hoje toma sol debaixo dos coqueiros, bebendo suco de abacaxi, abanando-se com um leque enorme e ajeitando o horroroso chapéu de palha sobre sua cabeça. Qualquer um pode ir lá e ver. De qualquer maneira, ninguém irá acreditar mesmo.