quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Suspense: Detetive

Será que você já jogou uma partida como esta?

– Foi a Dona Branca, com a faca, na cozinha.

Lurdes disparou mais uma foto sobre o cadáver da menina e voltou-se para o homem que entrava no aposento.

– Desculpe, mas não vejo nenhuma graça nisso, Nélson.

Nélson sorriu para ela, vestindo as luvas de látex. Aquela vaca tinha estômago, ele pensou. Nunca fazia uma piada, nunca dizia um gracejo. Conseguia encarar seu trabalho com uma frieza quase inumana. Ele não. Ou fazia piada, ou já teria pulado fora há muito tempo. Sem olhar muito para a menina – que idade teria? Nove? Dez, como a sua filha?

– Então você já tem uma teoria? – provocou, tentando refugiar-se dos seus próprios pensamentos, na lógica da colega.

A moça olhou ao redor e apontou a janela aberta que dava para o morro da Rocinha e seus barracos pendurados. De longe, pareciam um mosaico colorido. À noite, uma onda de luzes prestes a rebentar.

De perto, as coisas tendiam a ser menos poéticas.

– Bala perdida. Entrou por aqui e bateu em algum lugar, assustando a garota. Ela levantou-se depressa, pisou em falso, perdeu o equilíbrio e caiu contra o móvel. Quase um acidente.

– Que azar, né?

Nélson aproximou-se da janela e testou a rede de segurança. Achou que não inspirava a menor confiança, mas estava no lugar. Espiou para baixo: dez andares. Afastou-se em seguida da janela, da parede fina, do peitoral baixo e estreito, da queda livre que acelerava sua pulsação com um jato involuntário e inútil de adrenalina. Bateu o pé num carrinho de madeira virado. Ensaiou um sorriso mal resolvido, a fronte meio úmida de suor frio logo abaixo das raízes de cabelo.

– Sua teoria é que a bala veio de algum lugar da Rocinha pacificada, atravessou o espaço, encontrou um buraco pela tela e acertou alguma coisa do apartamento, assustando a garotinha?

A ironia, de alguma maneira, lhe deu fôlego para observar o quarto pequeno, pequenino mesmo, as paredes cor de rosa, a cama cheia de bonecas, como se fosse uma plateia. No chão, o corpo da menina, o rostinho surpreso. Um filete de sangue escorria por seus lábios. Ela caíra para trás com o golpe batera a cabeça na quina do elegante criado mudo com tanta força que rachara o crânio e de lá vinha aquela meleca toda – sangue e massa encefálica – que emplastava seus cabelos delicados. Nélson nunca tinha visto nada assim, a não ser uma vez, quando o Rascunho tinha matado Rodrigo Meu por causa de um travesti de escola de samba. Mas o Rascunho tinha dois metros de altura, braços da grossura de uma coxa e estava cheio de cocaína.

Pensando em coxas, desviou os olhos do rostinho branco da pequena e olhou para a calça jeans de Lourdes. Imaginou-a num biquíni. Não, melhor, pelada. Fez um trejeito com a boca. Olha, não é de se jogar fora! Um pouco fofa demais, mas não é de se jogar fora.

– Ela estava jogando “Detetive” – observou a moça, azeda, franzindo a testa. De vez em quando tinha de trazer o chefe de volta ao trabalho. Ele piscou os olhos pequenos e opacos e suspirou.

– Estou vendo. E estes são seus adversários?

Lourdes respirou fundo e balançou a cabeça.

– Coitadinha.

Nélson agachou-se e em silêncio e analisou o jogo.

O tabuleiro da partida estava montado diante das pernas inertes da menina. O último gesto com tinha jogado a perna direita por cima do canto do tabuleiro mas o resto estava em ordem. Nélson seguiu a direção apontada pelo pé e viu o carrinho de madeira caído. Balançou a cabeça, compreendendo: ela levantara-se, pisara no carrinho, ele deslizara embora, batendo contra a parede e virando. Ela caíra contra o móvel.

Que estranho, pensou ele. Se ela ouviu um tiro, por que levantou em vez de ficar abaixada? Ela não teria ficado encolhida? Não teria fugido abaixada? Ele conhecia as crianças daquela área, sabia que ela teria se metido embaixo da cama ao ouvir o impacto.

O que teria levado a menina a levantar-se tão assustada e tão depressa, que não prestasse atenção onde estava colocando o pé?

Observou o tabuleiro outra vez. Quatro peões coloridos se posicionavam pela planta baixa da mansão. O amarelo – Coronel Mostarda, lembrou o homem – na biblioteca, um azul, que ele não lembrava como se chamava, no meio de um corredor, e o vermelho – Dona Rosa – na sala de música. O peão branco estava na cozinha, mas, observando bem, viu que não era a faca que estava junto com ela, mas o cano. As demais peças – candelabro, chave inglesa, pistola, corda, faca – estavam espalhadas pelo tabuleiro.

De cada lado do jogo, havia uma boneca sentada. À direita da morta, uma boneca de pano, à esquerda, um monstrinho verde que na verdade era um cofrinho. Diante do cadáver, uma Barbie loura, linda e glamorosa. A filha de Nélson tinha uma coleção de Barbies.

Ele pegou a pistola diante do monstrinho verde e espiou o buraco do cano oco. Observou-o com o canto dos olhos. “Você seria o meu primeiro suspeito, cara” pensou.

– Quem estava ganhando? – ele perguntou para os bonecos. A moça ao lado dele congelou onde estava.

– O quê? – indagou ela. Nélson balançou a cabeça.

– Eu perguntei quem estava ganhando. Era só brincadeira.

Largou a pistola casualmente diante da Barbie e pegou as cartas da boneca, e a cartela de anotações. Já era uma cartela xerocada, o que o levou a pensar que provavelmente a menina jogava tanto que já tinha acabado com o bloco original.

A Barbie já tinha todas as respostas. A acusada era Dona Rosa. Os outros quadradinhos estavam marcados com um “X”. Ele passou para as cartas e o bloco da boneca de pano. A arma do crime, para aquela “jogadora”, era o cano. No quesito “aposento” faltavam três quadrinhos em branco e nos personagens, dois. Curiosamente, o quadrinho de Dona Rosa estava assinalado, o que significava que a carta havia sido mostrada à “jogadora”. Passou para o jogo do monstrinho verde – seu principal suspeito – e descobriu que o sujeito, se fosse humano seria bem curto das ideias. Um péssimo mentiroso.

Por fim, averiguou o jogo da menina morta. Observou as cartas e sorriu.

– Que danadinha! Estava blefando! – comentou, mostrando para Lourdes as cinco cartas que tinha nas mãos. Três correspondiam ao jogo posto – Dona Branca, como o cano na cozinha. Ele sorriu um pouco mais, lembrando que sempre dava um jeito de enganar os irmãos com aquele truque, quando jogavam. “Curioso,” pensou. Uma das cartas que tinha na mãos era a da fatal Dona Rosa, olhando para ele com olhos mortiços.

Aí olhou o bloco da menina. Ela também sabia quem era, onde era e com o que era, mas a resposta do personagem não fechava com a cartela de sua adversária frontal. Franziu o cenho, pegou o envelope das respostas, já puído de tanto usar, e puxou para fora as cartas. Saberia também como era matar alguém? Um gato, talvez, ou um porquinho da índia? indagou-se com amargura. Olhou a resposta: Senhor Marinho – era esse o nome do peão azul! – com a faca, na biblioteca.

Espiou de novo o jogo da morta e percebeu que ela havia feito uma modificação. Um “X”, que fora hachurado, marcando o Senhor Marinho. E o “X” da Dona Rosa estava calcado várias vezes.

Nélson olhou para os olhos vítreos e sem vida como os das bonecas ao seu redor e sentiu um arrepio.

– Que merda! Ela estava era roubando!

Lourdes piscou, confusa.

– Como assim? Ela estava jogando sozinha... A empregada ouviu o barulho e veio ver. Não havia ninguém com ela.

– Estava jogando com seus amigos – comentou ele levantando-se. Olhou para a Barbie e viu que a mãozinha minúscula, se fosse viva, poderia perfeitamente empunhar a arminha de plástico.

Estremeceu e olhou ao redor, sentindo-se subitamente ameaçado. Tirou do bolso um lenço amarelado que nem lembrava que estava lá e secou a fronte, úmida de novo.

– Ela estava jogando com seus bonecos – calcou Lourdes viperina.

– Foi o que eu disse.

Os dois se entreolharam.

– O senhor está dizendo que ela foi morta por um dos bonecos? – Lourdes perguntou, devagar, separando bem as palavras, para que ele tivesse oportunidade de pensar nelas. Nélson olhou a moça por um longo instante, batendo com as cartas da resposta nos dedos, depois fitou a Barbie que encarava o cadáver à sua frente com aquele sorriso congelado de top model. Deu de ombros, jogou as cartas sobre o tabuleiro derrubando um dos peões e deu as costas para quarto, ganhando rapidamente a porta.

– Suponho que você vá procurar a sua bala perdida, Lourdes. Te encontro mais tarde no departamento – comentou. Poderia ter acrescentado “você não vai achar nada, então porque não abreviamos a tarde de todo mundo, liberamos o corpo para autópsia que vai concluir o óbvio ululante: a menina foi descoberta em sua trapaça, levantou-se – para escapar da mira da boneca furiosa –, escorregou no carrinho de madeira – devidamente colocado próximo ao seu pé – e caiu com toda força na quina do móvel. Foi tudo muito bem planejado e orquestrado. Aposto que isso vinha acontecendo há muito tempo. E aposto que todos eles participaram, os filhasdaputa.”. Mas espiando os bonecos que olhavam fixamente para frente, e coincidentemente para Lourdes parada no meio do quarto com as mãos na cintura, achou melhor calar a boca, deixar a colega chegar às conclusões lógicas que sempre chegava, e salvar, quem sabe, a vida dela. Não sabia como ela reagiria se toda aquela galera de pano e espuma resolvesse virar as cabecinhas mimosas em sua direção de uma vez só. A tela de segurança da janela não ia aguentar o sobrepeso da colega.

– Vou andando. Meu bipe deu sinal – comentou ele à meia voz, fugindo para o corredor.

– Espera aí, Nélson, você enlouqueceu de vez, foi? – gritou Lourdes, seguindo-o e deixando o quarto cor de rosa vazio.

No silêncio retumbante do cadáver, um suspiro audível percorreu a audiência de plástico e silicone. E os olhos azuis da Barbie se fecharam lentamente, aliviados.